No texto anterior, para não me alongar demais para o modelo de um blog, deixei de fora as questões referentes ao transporte de passageiros. Então, volto para completar a pretensiosa resposta à Ivana Diniz sobre o trecho em que ela pergunta: “... e se a maior parte desses [carros] fosse substituída por trens de passageiro?”
Como já havia informado no primeiro texto sobre a Ferrovia do Aço, juntamente com os trens de “minério de ferro, cimento e outras mercadorias de Minas para São Paulo, assegurando o transporte de produtos industrializados de São Paulo para Belo Horizonte”, havia a proposta de “permitir o transporte de passageiros entre as duas capitais em trens que far[iam] até 120 quilômetros por hora, cobrindo o percurso em 6 horas”1.
Esquema da Ferrovia do Aço em projeto em linha duplicada (azul pontilhado) e o executado em linha singular (verde)
Pois veja que proposta ousada. Trens de passageiros acima de 100km/h no Brasil da década de 1970 já era uma velocidade espantosa se comparada ao que se praticava então, mas também ao que se pratica hoje na única ferrovia de longo percurso em bitola larga que mantém um serviço de passageiros no país, a Estrada de Ferro Carajás, entre as minas de Carajás, no Pará, e o porto de São Luiz, no Maranhão, que tem velocidade de cruzeiro de 60km/h.
Trem de passageiros da Estrada de Ferro Carajás. Foto de Nicolas Fagundes.
Já dito, também, que a proposta inicial - e que chegou a ter o equipamento adquirido - da FdA era a eletrificação total da estrada em 25 kV a 60 Hz, corrente alternada monofásica. Assim, os trens seriam um tanto semelhantes aos da África do Sul, que utiliza locomotivas similares, em rede de 50 kV a 50 Hz. Em “português”, isso implica que a FdA utilizaria o fornecimento das redes de distribuição de energia elétrica já existentes, não necessitando a construção de usinas próprias ou estações de conversão de freqüência.
Assim, em via duplicada, juntamente à norma de prioridade de trens de passageiros, a conexão entre São Paulo e Belo Horizonte seria mais rápida do que a atual conexão rodoviária, até mesmo que a média dos automóveis - sem mencionar os custos mais baixos, tanto individuais quanto no sentido da emissão de poluentes.
Trem da Spoornet, África do Sul, aos moldes do projetado para a Ferrovia do Aço. Foto de Joyce van der Vyver.
É sempre bom lembrar que as estradas de ferro representam uma demanda muito mais de responsabilidade social do Estado do que objeto de produção de lucro per si. O próprio modelo norte-americano tem isso em conta.
Entra democrata, sai republicano, e a Amtrak continua, mesmo que por vezes atacada pela lógica de mercado. Criada em 1971 durante o governo do republicano Richard Nixon, a Amtrak (National Railroad Passenger Corporation) é uma estatal federal que tem como missão manter o atendimento no transporte público de passageiros após a derrocada das companhias privadas, que tinham nesse tipo de serviço apenas o signo do prejuízo e da decadência a partir do pós-guerra. O caminho do Brasil foi um tanto diferente.
Após a criação da RFFSA, em 1957, os trens de passageiros de longo percurso - quer dizer, os trens não metropolitanos/urbanos - continuaram sob a responsabilidade das divisões advindas das ferrovias formadoras da “Rede”. Já os trens metropolitanos/urbanos passaram a ser responsabilidade da Diretoria de Transportes Metropolitanos (DTM) da RFFSA até 1984, quando a razão social da ENGEFER (Empresa de Engenharia Ferroviária S.A.) foi mudada para CBTU (Companhia Brasileira de Trens Urbanos), que herdou as funções da DTM-RFFSA. Não cabe aqui discutir os trens metropolitanos, o assunto de hoje são os trens interurbanos e interestaduais, o que se convencionou chamar, como já dito, “trens de longo percurso”.
Esses trens - assim como propaga o mito anti-juscelinista sobre o desmanche processual das ferrovias de forma geral - foram objeto de descaso principalmente após o golpe de 1964, conforme discuto no texto anterior.
A obsolescência das ferrovias da RFFSA pós-golpe é notória, e o processual abandono e corte nos trens de passageiros da mesma RFFSA não só foi sentida durante as três décadas de sua míngua, bem como é sentida profundamente hoje, após sua extinção, sob a desculpa cínica de que as linhas eram inseguras para os trens de passageiros durante o processo de concessão entre 1996 e 1998 - sério exemplo do “bebê que vai ao ralo junto com a água da bacia”.
Na década de 1990, quando os trens de passageiros comuns das ferrovias da América do Norte - incluso o México - e da Europa, da Rússia, da China e da Austrália já faziam médias que atingiam entre 80 e 150km/h, os velhos trens da RFFSA ainda praticavam os 40km/h de média, muito apropriados para o século XIX. Mesmo os trens da CVRD (atualmente apenas Vale S.A.), mas especialmente citado aqui o da Estrada de Ferro Vitória a Minas, nesse ínterim (1960-2018), não passaram nunca da média de 60km/h. Uma viagem entre Belo Horizonte e Vitória (na verdade Cariacica) raramente dura menos de 12 horas, num percurso de 600km - consideradas as paradas de um minuto na maioria das trinta estações.
A FdA, em seu projeto, sinalizava, mal ou bem, um caminho que era “natural” para o desenvolvimento desse modal de transporte de passageiros. Os seus 120km/h eram não só praticáveis, como parte do desenvolvimento e melhoria das vias, com redução das rampas e amplificação e redução de curvas. Estava ali uma tendência que, infelizmente, não prosperou, como vimos demonstrando no interior deste blog em várias ocasiões, mas especialmente nesta série de posts sobre a Ferrovia do Aço.
Durante um tempo, já no persente século - tivemos o projeto mais idiota inverossímil para trens de passageiros visto no Brasil. O TAV (Trens de Alta Velocidade), num país que abandonou os trens de passageiros há décadas, seria um desperdício imenso de recursos para atender, mesmo que a região de maior intensidade demográfica do país, um trajeto no mínimo injusto e de pouca efetividade prática, já que muito bem atendido pela ponte aérea Rio - São Paulo. Um trem a 300km/h ao mesmo preço ou mais caro do que uma viagem de Boeing 737 poderia fazer sentido se o país tivesse uma malha ferroviária, mesmo que comum, atualizada e mantida dentro dos preceitos da segunda metade do século XX, pelo menos. Com a ausência de um sistema nacional que atenda todo o território, ou a maior parte dele – interregional no sentido das macrorregiões do Brasil ou mesmo das micro, dentro dos estados - um TAV chega a ser uma ofensa ao bom senso.
Orçado, nas últimas atualizações (2010), em 32 bilhões2 para a construção de infraestrutura e superestrutura, mais equipamentos, esse capital seria suficiente para reformar e modernizar as ferrovias existentes e recuperar os trens de velocidade comum dentro dos padrões, já suficientes, anunciados em 1972 pelo projeto da Ferrovia do Aço.
TGV francês, fruto de um desenvolvimento secular do transporte de passageiros por ferrovias, média de 320km/h. Foto de Daniel Minaca.
Trem da AMTRAK em Sandcut, CA, compartilha as linhas do transporte regular de cargas. Foto de Kavin Bleich.
1REFESA. Ministério dos Transportes. Maio-junho, 1973, p.20.
2Infelizmente, o link para o edital não está mais disponível, como pode ser conferido: http://www.antt.gov.br/index.php/content/view/11659/Edital.html
Um comentário:
Belo post! parabéns..
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