sexta-feira, 11 de junho de 2021

A Rede Ferroviária Federal S. A. e sua relação com as antigas ferrovias da União [Versão curta]

Pela Lei nº 3.115, de 16 de março de 1957, foi incorporada a Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima, acrônimo RFFSA, nome popular pela abreviação “Rede”.

O mote para este texto foi um diálogo no interior de um grupo de Facebook destinado a conteúdo sobre a Estrada de Ferro Central do Brasil, acrônimo EFCB, de nome visual abreviado “Central”, que se tornou o mais popular para referência. No referido diálogo, travado com membros que são ex-funcionários/empregados da RFFSA na década de 1970, ficou claro que nem mesmo aqueles que se relacionaram institucionalmente com a “Rede” entenderam exatamente o que essa entidade era.

Os senhores, muito competentes nos assuntos sobre material rodante, sinalização, infra e superestrutura e que tais técnico-tecnológicos e operacionais, demonstram ser menos íntimos nos assuntos institucionais. Não os culpo. De fato, entender a política e a administração de entidades e empresas de estado é um porre para a maioria das pessoas, mesmo as envolvidas com essas.

Para entender a existência da RFFSA é preciso compreender que ela resulta de um processo relacionado ao sistema de concessões ferroviárias estabelecido desde o Decreto-Lei nº 101 de 1835 e aperfeiçoado por outras leis e decretos no decorrer dos anos. Independentemente da lei ou dos aperfeiçoamentos, uma estrutura foi estabelecida: assim como outros sistemas de infraestrutura e transporte, as estradas de ferro no Brasil seguiam o modelo de concessões. As concessões consistiam, resumidamente, a contratos estabelecidos entre o estado (nas três instâncias verticais) – concedente – e indivíduos ou companhias – concessionários. Esse contrato estabelecia, grosso modo, o tempo de vigência (normalmente 30 anos, renováveis pelo mesmo período até o limite de 90 anos), o privilégio de zona (uma espécie de monopólio territorial) e a existência ou não de algum tipo de subvenção, que poderia ser quilométrica – em que o estado garantia um valor auxiliar para cada quilômetro construído – ou em forma de garantia de juros (entre 5 e 7%, normalmente 5% do governo central mais 2% da unidade federativa).

Acontece que nem todas as companhias perduravam pelo tempo contratado, vindo a desistirem no meio do caminho ou a falirem. Um dos raros casos de duração máxima do contrato, até o limite da renovação total de 90 anos, foi o da concessão da São Paulo Railway Company Limited, popularmente chamada de “a inglesa”. A SPR foi a concessionária da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí e essa concessão existiu entre 1856 e 1946, tendo pertencido originalmente a Irineu Evangelista de Souza que a repassou à companhia com sede em Londres. Detentora de uma conexão e privilégio sobre o porto de Santos, a EFSJ mostrou-se uma das mais lucrativas ferrovias do Brasil e do mundo, funcionando como um funil para o acesso de todas as mercadorias provenientes de outras estradas de ferro da província, depois estado, de São Paulo.

O problema é que nem todas as ferrovias eram lucrativas como a EFSJ, mas, por outro lado, correspondiam a projetos importantes para a modernização de infraestrutura e projetos nacionais de domínio do território. Uma das principais, ou melhor, a principal ferrovia do Brasil foi a Estrada de Ferro Dom Pedro II, convertida em Estrada de Ferro Central do Brasil com a mudança de regime de 1889, de monarquia para república.

A EFDPII, inicialmente, foi a parte operacional de uma companhia, a partir de uma concessão regida pelo Decreto-Lei nº 641, de 26 de junho de 1852. Essa companhia era a Companhia Estrada de Ferro Dom Pedro II.

É interessante mencionar a diferença entre CEFDPII e EFDPII, pois ela ilumina o caminho para compreendermos o papel da RFFSA cem anos depois.

A Companhia EFDPII existiu entre 1854, data de sua incorporação pelo governo imperial, e 1865, ano em que a companhia por ações foi dissolvida e a EFDPII passou a ser administrada não mais por uma empresa, mas diretamente pelo estado imperial, através do Ministério de Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Essa situação manteve-se, mais ou menos, do mesmo modo até 1957, com mudanças mais pontuais apenas na configuração dos ministérios e suas divisões internas. Em 1889/90, já como EFCB, a principal ferrovia de propriedade do estado nacional brasileiro – agora da União, depois de pertencer ao Império – passou a ser administrada no âmbito do novo ministério, o da Indústria, Viação e Obras Públicas e no interior dos ministérios referentes sob as reformas ocorridas entre 1889 e 1957.

Acontece que, ao iniciar o governo JK, a União era a responsável por várias das estradas de ferro devolutas ao poder público, seja por falência ou desistência das companhias concessionárias, seja pelo fim do tempo de vigência dos contratos. Sendo assim, a solução encontrada no seio do plano de metas foi terminar a gerência dessas ferrovias pelo então Departamento Nacional de Estradas de Ferro, órgão interior ao então Ministério de Viação e Obras Públicas (existente desde 1906), e concentrá-las no interior de uma nova empresa estatal de economia mista: a RFFSA.

A EFCB foi extinta com a criação da RFFSA?

Essa é a questão fundamental de entendimento equivocado por uma parte do público, se não por todo o público.

Fig. 1. Locomotiva diesel-elétrica ALCO/MLW RS-3 nº 3317 da unidade operacional RFFSA-EFCB (RFFSA-Central). Foto de Fábio Dardes.

A Rede Ferroviária Federal S.A. não era uma ferrovia, ela era uma empresa que administrava uma série de ferrovias. Talvez o motivo de as pessoas confundirem a empresa administradora com as unidades operacionais sob seu capital se deva à cultura visual. É perceptível no discurso amplo, mesmo de interessados pelo tema geral das ferrovias, que o público interpreta a “Rede” como uma substituta das ferrovias que a formaram. Porém, em verdade, a RFFSA era uma substituta das concessionárias – no caso das ferrovias de capital privado, como, por exemplo, a SPR – e das entidades de estado – no caso das ferrovias da União, como, por exemplo, o MVOP/DNEF.

Documentos definitivos para ilustrar essa questão são os relatórios da empresa publicados anualmente a partir de 1958.

Fig. 2. RFFSA. Relatório Anual de 1958. “Unidades de Operação”. Rio de Janeiro: RFFSA, 1959, p. 3.

A imagem acima é a página 3 do primeiro relatório da RFFSA aos acionistas. Nessa página são enumeradas as unidades operacionais, ou seja, as dezesseis ferrovias encampadas pela nova estatal de economia mista em seu primeiro ano de atuação.

A imagem abaixo, equivalente à anterior, já mostra as dezessete unidades operacionais, portanto, dezessete ferrovias administradas pela “Rede”.

Fig. 3. RFFSA. Relatório Anual de 1959. “Unidades de Operação”. Rio de Janeiro: RFFSA, 1960, p. 5.

Vejamos como aparece a antiga EFCB no interior da RFFSA no relatório referente ao ano de 1965, mesmo ano em que as Rede Mineira de Viação, Estrada de Ferro Goiás e Estrada de Ferro Bahia-Minas foram unificadas como Viação Férrea Centro-Oeste – reduzindo três unidades operacionais a apenas uma.

A fim de atender a demanda do transporte de minério e do programa de dieselização da RFFSA, estão sendo adquiridas 169 locomotivas, das quais 69 de bitola de l,60m destinadas a E.F. Central do Brasil.”[1]

À mesma página, mais adiante, lê-se:

“Em fase de construção encontram-se as oficinas diesel das E. F. Leopoldina e R. F. do Nordeste e de acabamento diversas outras, inclusive a da V. F. F. Leste Brasileiro, havendo sido inaugurada a da V. F. do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre.”[2]

É fácil compreender, portanto, que a RFFSA não extinguiu a EFCB. A empresa estatal de economia mista apenas a encampou como uma das unidades operacionais, juntamente com outras tantas que já estavam sob a administração federal ou em vias de serem federalizadas. A relação da RFFSA com a EFCB, a partir de 1957, era similar à relação da CEFDPII com a EFDPII, entre 1855 e 1865, e à relação entre os MIVOP/MVOP e DNEF e a EFCB, de 1889 a 1957.

A extinção da EFCB – e de todas as outras unidades operacionais referentes às ferrovias formadoras (EFSJ, EFL, VFRGS etc) – se deu apenas em 1976, quando em uma reorganização mais profunda a RFFSA trocou as unidades operacionais anteriores por superintendências desvinculadas da cultura anterior, em um esforço de eliminar as identidades ferroviárias tradicionais e estabelecer um modelo de gestão de caráter asséptico e definitivamente unificador do sistema.

No meio do caminho, a maior reorganização estabelecida internamente havia sido o estabelecimento de divisões operacionais em substituição às unidades operacionais em 1970. Assim, por exemplo, a RFFSA-EFCB (RFFSA-Central) passou a figurar no organograma e documentação como RFFSA 6ª Divisão Central. A vizinha RFFSA-VFCO passou a figurar na mesma documentação e organograma como RFFSA 5ª Divisão Centro-Oeste. O mesmo ocorreu com as outras unidades.

Citei a VFCO como segundo exemplo no parágrafo acima porque essa, na ocasião da criação das superintendências regionais, foi mesclada com parte da EFCB. Enquanto a malha em bitola de 1,60 m da EFCB passou a ser parte da Superintendência Regional 3 (RFFSA SR-3), mais especificamente a Superintendência de Produção 3 (SP-3), a malha de bitola métrica norte-mineira da EFCB – Conselheiro Lafaiete-Monte Azul – se fundiu com a VFCO, como parte da Superintendência Regional 2 (RFFSA SR-2).

Assim, podemos compreender que a EFDPII/EFCB perdurou entre 1855 e 1976 como unidade ou divisão operacional administrada por CEFDPII, MACOP, MIVOP, MVOP, MVOP/DNEF e RFFSA.

 



[1] RFFSA. Relatório Anual de 1965. Rio de Janeiro: RFFSA, 1966, p. 4.

[2] RFFSA. Relatório Anual de 1965. Rio de Janeiro: RFFSA, 1966, p. 4.

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