Faz, já, algum tempo que não retorno a este blog. Um modelo um tanto em desuso, ou subutilizado, após o advento das plataformas sociais, mais velozes e efêmeras, o blogger, ou seus equivalentes, tem nos atraído um tanto menos para a escrita. Porém, em momentos de crise, tendemos a retornar a projetos mais “tradicionais”.
A conjuntura atual me trouxe aqui para retomar um assunto que iniciei em junho de 2015, a respeito da chamada “ferrovia do aço”. Parece que foi há muitos anos, mas para quem tem grande afinidade com Fernand Braudel, isso é apenas uma molécula de água na Represa de Camargos.
Este texto tem a ousadia ou pretensão, também, de querer ser uma resposta à questão levantada pela minha querida Ivana Diniz no facebook:
“Eu sempre pensava: e se a maior parte desses caminhões fosse substituída por trens de carga? E a maior parte dos carros, por trens de passageiro? Ganhos na economia, na sustentabilidade, na rapidez, no bem-estar da população etc etc.
O Brasil é o país do mundo que mais produz caminhões. O lobby das montadoras deve ser avassalador.
Precisamos ser apresentados ao trem, esse meio de transporte que revoluciona o mundo desde o século 19. Pelo menos.”
Primeiro Relatório da RFFSA, 1958, p.35.
Desde que Bernardo Pereira de Vasconcelos redigiu o projeto de lei para a construção de ferrovias no território brasileiro durante o período regencial, mais especificamente durante a regência do padre Feijó, essa porção da infraestrutura do país passou por momentos que variaram entre a ânsia pelos ideais de progresso material e melhoramentos da rede viária até discursos inflamados contra esse transporte, agora, em certos dizeres, “arcaico”, que com suas dimensões exageradas atravanca o trânsito dentro das cidades dominadas pelo fetiche e adoração do automóvel[i], como se os modais rodoviário e ferroviário fossem concorrentes e não complementares.
Durante quase cem anos – entre as décadas de 1850 e 1930 – a malha ferroviária brasileira se expandiu de diversas formas e por razões que variaram da pura necessidade logística, por um meio de transporte mais dinâmico e rápido – em relação à tração animal, como as tropas de muares e carros de boi – às jogadas de bastidores para se aproveitar dos rendimentos interessantes provenientes das garantias de juros e subvenções quilométricas do governo central e/ou dos governos provinciais[1]. De qualquer modo, a expansão ferroviária fazia parte de um projeto de nação, quer de forma planejada e ordenada ou nem tanto. No caso do centro-sul do Brasil, eu diria que as estradas de ferro – capitaneadas pela Estrada de Ferro Dom Pedro II (mais tarde Estrada de Ferro Central do Brasil) – foram um fenômeno proveniente do projeto saquarema, ou seja, das estratégias de fortalecimento da centralidade da Corte do Rio de Janeiro na formação do Estado Nacional Brasileiro[2].
Enquanto no centro-sul, que equivale às atuais regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul, a E. F. D. Pedro II liderava essa costura do território em torno do Rio de Janeiro, o Nordeste apresentava projetos de ferrovias que conectassem o litoral, as áreas de produção da cana-de-açúcar e o Rio São Francisco, tendo como principais companhias – ambas de capital britânico – as Estrada de Ferro Recife ao São Francisco e Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco[3].
Fui tão longe para falar desse assunto pois a consolidação da infraestrutura de transporte brasileira, de uma perspectiva estrutural, é não outra coisa senão absurdamente falha. Dessa forma, vejo a Ferrovia do Aço como caso paradigmático para falar dessa questão estrutural.
No contexto da Rede Ferroviária Federal, como todos sabem, uma estatal de economia mista criada em 1957 para administrar as ferrovias da União, um dos projetos maiores foi uma ferrovia para funcionar em paralelo com a antiga Central do Brasil, que ligava os três principais estados do centro-sul. O papel desempenhado pela tal FdA seria dar vazão expressa ao minério de ferro do quadrilátero ferrífero de Minas via porto de Santos, no sentido interior-litoral, e dinamizar a chegada da matéria prima beneficiada por Cosipa, em São Paulo, e CSN, em Volta Redonda – para esse último caso, portanto, haveria um ramal pelo sul de Minas a adentrar o leste fluminense. Outrossim, até aquele momento, ainda era considerado nas contas o transporte de passageiros, em que o teríamos, segundo os planos iniciais, com trens a correrem a 120km/h, velocidade muito acima da praticada então e até a erradicação do transporte de passageiros por trilhos, com a reconcessão das ferrovias da União para a iniciativa privada.
Além da Ferrovia do Aço, anunciada em 1972, tivemos, depois disso, mais três grandes projetos de ferrovias que chegaram à execução de obras: a Estrada de Ferro Carajás, através da Cia. Vale do Rio Doce; a Estrada de Ferro Norte-Sul, que emendaria a E. F. Carajás, ao norte, a São Paulo, ao sul; a Transnordestina, que geraria uma dinâmica regional entre os estados do Piauí, Ceará, Paraíba e Pernambuco, com ligações fundamentais aos portos de Suape (PE) e Pecém (CE), além de conexão ao Maranhão, na região Norte, até o porto de São Luiz.
Alguns tem dito que "o Brasil esqueceu do transporte ferroviário". Na verdade, se tem uma coisa que o Brasil não esqueceu foi do transporte ferroviário. Até porque a ausência de pessoa ou objeto tão necessários é uma das coisas que mais nos faz lembrar de alguém ou de algo. Nesse caso, eu inverteria e diria que o Brasil sente muita falta do transporte ferroviário e não para de lembrá-lo, pois é uma figura muito mais de memória do que de presença. No entanto, reelaboro a questão: o que falta são projetos para a expansão da malha existente e construção de novas ferrovias ou a efetivação dessas, por sua retirada do plano dos projetos para o plano da construção e operação?
Como já frisei em outros momentos neste despretensioso blog, existe um mito que responsabiliza o governo de Juscelino Kubitschek pela “troca” do modal ferroviário pelo rodoviário, como se na perspectiva e nas prerrogativas dos “50 anos em 5” – o Plano de Metas – as ferrovias não fossem consideradas dignas e úteis de modernização e expansão.
Vale sempre lembrar que a Rede Ferroviária Federal S.A. (a partir daqui apenas RFFSA) foi criada em 1957, autorizada pela Lei nº 3.115, de 16 de março, repito, para administrar as estradas de ferro pertencestes à União e que, até então, estavam unidas apenas pelas contas do Departamento Nacional de Estradas de Ferro (DNEF). No total, eram dezoito antigas companhias, de norte a sul do país, com suas concessões canceladas, vencidas ou à beira de terminar. Eram elas:
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré
Estrada de Ferro de Bragança
Ferrovia São Luís-Teresina
Estrada de Ferro Central do Piauí
Rede de Viação Cearense
Estrada de Ferro Mossoró-Sousa
Estrada de Ferro Sampaio Correia
Rede Ferroviária do Nordeste
Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro
Estrada de Ferro Bahia-Minas
Estrada de Ferro Leopoldina
Estrada de Ferro Central do Brasil
Rede Mineira de Viação
Estrada de Ferro Goiás
Estrada de Ferro Santos a Jundiaí
Estrada de Ferro Noroeste do Brasil
Rede de Viação Paraná-Santa Catarina
Estrada de Ferro Dona Teresa Cristina
Algumas outras foram incorporadas mais tarde, como a Estrada de Ferro de Nazaré que foi erradicada logo em seguida à sua incorporação à RFFSA.
EFCB. Viaduto Canal do Mangue, Rio de Janeiro, 1907. Cartão postal.
No interior da criação da RFFSA, haveria um esforço de levantamento para mapear as capacidades dos trechos mais ativos e dos mais problemáticos e antiquados para direcionar os esforços não de erradicação dos deficitários, mas da melhoria em seus perfis e padrões para que o atendimento mudasse de direção. Inclusive, nesses planos, que não tiveram tempo de ser executados, uma das propostas seria colocar em prática obras para o alargamento das vias, para que em médio e longo prazo ocorresse a unificação da bitola para 1,60m, a chamada “bitola larga”. Para quem quer saber mais sobre bitola ferroviária, clique aqui. De fato, consigo apontar pelo menos um trecho que teve esses serviços realizados: a porção da antiga Estrada de Ferro Oeste de Minas em bitola de 0,76m, em Minas Gerais, entre Lavras e Divinópolis, passando por Bom Sucesso. Em 1964, essa obra que havia se iniciado anos antes, foi entregue ao tráfego com todo o trajeto reelaborado, rampas suavizadas para o máximo de 1,2% (anteriormente chegava a mais de 4%)[ii] e as curvas passaram a ter raio mínimo de 400 metros (anteriormente esse raio mínimo era de 60 metros)[iii]; os túneis e pontes então construídos, obedeciam a uma razão de largura e altura que permitiria trens maiores, mais largos e mais velozes no futuro.
No entanto, durante os governos ditatoriais dos generais, os mesmos estudos que visavam o aperfeiçoamento dos trechos antiquados (parte considerável do todo), passaram a servir para fazer o oposto. Então, sob o ministério Mário Andreazza, nos Transportes, o Brasil viu sua malha, que deveria se modernizar e se integrar aos modais rodoviário (em expansão) e hidroviário, os dados sobre as linhas deficitárias e antiquadas serviram para iniciar um plano de erradicação. Esse “plano de erradicação de trechos deficitários” fez sumir do mapa uma quantidade enorme de vias férreas, algo que durou até o Plano Nacional de Desestatização (PND), no governo Collor.
Outro fenômeno, hoje presente de forma colossal, herdado da era Andreazza – o que não quer dizer que tenha sido inventado no período, porém profissionalizado –, é a relação entre empreiteiras e governos (legislativo, executivo e, desconfio, judiciário), que é parte da corrupção sistêmica e, praticamente, crônica, que envolve todo o ramo das obras públicas. E, arrisco dizer, esse ponto é um dos mais problemáticos e que mais dificuldades traz para a construção de ferrovias no país. O poder alcançado por grandes empreiteiras, como vimos revelado de forma impactante pelas matérias da Operação Lava Jato [sic], trouxe a consequência dos atrasos programados dentro das obras e, até mesmo, projetos feitos para tornar a operação ferroviária inadequada, como os próprios dados técnicos da VALEC sobre a Ferrovia Norte-Sul revelam em relatório.
Raio mínimo de 230m (da Estrada de Ferro Carajás é 800m e da Ferrovia do Aço 900m - do TGV francês é de 7200m, só a título de ilustração); 32t brutas/eixo (novos vagões da EFC e da MRS já trabalham com 37,5t/eixo). Em português: a Ferrovia Norte-Sul já nasce tecnicamente obsoleta, com grandes limitações de velocidade e peso de cargas. Só o raio de curva, que é um dos fatores importantes para o limite de velocidade, está em padrões da segunda metade do século XIX.
Voltando à FdA, digo que ela serve como paradigma do assunto pelo fato de reunir todas as características que tornam a construção de ferrovias no Brasil contemporâneo um desafio que beira o impossível.
Desvio de verbas, desvio de mercadorias, superfaturamento, chantagem de construtoras, subutilização etc.
Para não me estender mais, termino por aqui. Em breve, retorno para continuar levantando outros pontos do mesmo grande problema. Ainda não respondi à questão sobre o transporte de passageiros, e esta merece um texto aparte.
[i] Não estou aqui diminuindo a importância dos veículos rodoviários, que fique claro, para a dinâmica dos meios de transportes em seu conjunto.
[ii] O fator “rampa” em ferrovias é um dado importantíssimo e se calcula em porcentagem, que é a relação entre comprimento e altura; por exemplo, uma rampa de 2% indica que a cada 100 metros de via sobe-se 2 metros. Quanto menor essa porcentagem, mais “plana” é a via.
[iii] O fator “raio mínimo” se refere à amplitude das curvas, quer dizer que quanto menor o raio, mais fechada é a curva.
[1] Ver BAPTISTA, José Luiz. “O surto ferroviário e seu desenvolvimento” In: Separata dos “Anais” do Terceiro congresso de História Nacional (VI Volume), publicação do Instituto Histórico. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942, pp.430-586; SUMMERHILL, William. Order Against Progress: government, foreign investment, and railroads in Brazil, 1854-1913. Stanford, CA: Stanford University Press, 2003; LAMOUNIER, Maria Lúcia. Ferrovias e Mercado de Trabalho no Brasil do Século XIX. São Paulo: EDUSP, 2012; EL-KAREH, Almir Chaiban. Filha Branca de Mãe Preta: A Companhia da Estrada de Ferro D. Pedro II, 1855-1865. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982; SANTOS, Welber. A Estrada de Ferro Oeste de Minas: São João del-Rei (1877-1898). 2009. Dissertação de Mestrado. Instituto de Ciências Humanas e Sociais/UFOP, Mariana, MG.
[2] Ver MATOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC; Brasília: INL, 1987.
[3] Ver op.cit. LAMOUNIER, 2012; SOUZA, Robério. Trabalhadores nos Trilhos: imigrantes e nacionais livres, libertos e escravos na construção da primeira ferrovia baiana (1858-1865). Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2015.
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