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Dois carros típicos de fabricação Trajano de Medeiros. Aba curva floreada, extremidade da cobertura em arco abatido e portas descentralizadas. |
Carro e vagão são termos sinônimos e não há nada de errado em chamar de “vagões” os veículos rebocados que o jargão operacional ferroviário denomina como “carros”.
No sistema britânico, os veículos rebocados – ou seja,
aqueles que não possuem tração própria – seguem, basicamente, dois tipos básicos:
os “wagons”, que seriam aqueles utilizados para o transporte de mercadorias e
materiais, e os “carriages”, que seriam aqueles utilizados para o transporte de
pessoal e passageiros.
No sistema americano (ou estadunidense, como preferir), todos
são “cars”. Há os “passenger cars” (carros de passageiros) e os “freight cars”
(carros de carga).
No Brasil, convencionou-se chamar de “carros” aqueles veículos
destinados ao transporte de passageiros e de pessoal da estrada e de “vagões”
aqueles veículos destinados ao transporte de mercadorias e materiais.
Aqui, vamos focar nos carros; ou melhor, em dois carros específicos.
Os carros B-1 e B-11
da “bitolinha” de São João del-Rei.
As matrículas dos veículos rebocados provenientes da antiga Estrada
de Ferro Oeste de Minas, que conhecemos até hoje, não são legadas dessa ferrovia
formadora. Em 1938, o Decreto-Lei
132, de 23/09/1938, do Estado de MG, extinguiu a Estrada de Ferro Oeste de Minas
e a Estrada de Ferro Sul de Minas (ex-Rede de Viação Sul-Mineira). Em 1939, foram publicadas as Instruções para o Serviço do Movimento (ISM) que, entre outras
definições, estabeleceram os códigos de matrícula para material rodante.
Apesar de ter integrado a Rede Ferroviária Federal S.A., a
malha em bitola de 762 mm não recebeu novas matrículas para seu material
rodante nem mesmo com o estabelecimento do Sistema Integrado de Gestão Operacional (SIGO). Ao menos é o que percebemos ao
observá-los no Complexo Ferroviário de São João del-Rei (CFSJDR) e no trajeto
até Tiradentes, único trecho percorrido por eles desde 1984.
A matrícula de cada item de material rodante, apesar de
servir como um nome para cada um, tem uma importância maior. Ela é uma
identidade operacional e um registro de patrimônio. Não deve ser alterada sob
nenhuma hipótese, a não ser em caso de se fazer um sólido registro documental para reconfigurar o bem em um momento histórico anterior.
Como dizíamos, as denominações e classificações mantidas
pela “bitolinha” são as mesmas encontradas no documento RMV - Instruções para o
Serviço de Movimento, de 1939:
Denominam-se carros os veículos destinados ao transporte de passageiros, condutores de trens, correio e bagagem e aos serviços da Administração, de socorro, alojamento do pessoal e restaurante. São classificados: Série A – Administração; Série B – 1ª classe para passageiros; Série C – 2ª classe para passageiros; Série D – Dormitório, Série E – Mixto (1ª e 2ª classes); Série F – Bagagem, correios e chefe do trem, correio e bagagem; Série G – Restaurante; Série H – Bagagem e animais; Série I – Salão; Série J – Transporte de cadáveres; Série R – Socorro e alojamento do pessoal.[1]
Entre os carros “sobreviventes” após 1984, e que formam o
acervo do CFSJDR, temos:
Administração/Especial:
A-3: fabricado por Harlan & Hollingsworth, de
Wilmington Delaware, EUA, originalmente Primeira Classe, reconstruído como
Especial (Administração) nas oficinas de São João del-Rei.
A-5: fabricante ainda não determinado (carece de inspeção),
potencialmente H&H, também.
A-6: fabricante ainda
não determinado (carece de inspeção), potencialmente H&H, também.
A-7: construído nas Oficinas de Lavras da Rede Mineira de
Viação.
Primeira Classe:
B-1: fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de
Janeiro.
B-2: fabricado por Companhia Edificadora da Quinta do Caju,
do Rio de Janeiro.
B-3: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro
Oeste de Minas/Rede Mineira de Viação.
B-5: fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de
Janeiro.
B-8: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste
de Minas/Rede Mineira de Viação.
B-11: fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio
de Janeiro.
B-13: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste
de Minas/Rede Mineira de Viação.
B-14: fabricado por Companhia Edificadora da Quinta do Caju,
do Rio de Janeiro.
Segunda Classe:
C-1: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste
de Minas.
C-8: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.
C-9: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste
de Minas.
C-10: fabricado por Companhia Edificadora da Quinta do Caju,
do Rio de Janeiro.
C-13: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste
de Minas.
C-16: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas (atualmente classificado como G-1 – adaptado como carro restaurante em 1984 para a Minissérie Rabo de Saia, inspirada no livro "Pensão Riso da Noite", de José Condé, permanecendo assim).
C-17: fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de
Janeiro.
Mistos:
E-4: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste
de Minas.
E-7: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste
de Minas.
Bagagem, Correios e Chefe do Trem:
F-7: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste
de Minas.
F-8 (rematriculado ainda pela RFFSA como F-9[2]):
construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.
Socorro:
RA-6:
fabricado por Lancaster Railway Carriage and Wagon Co., de Londres, Inglaterra.
RB-11: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro
Oeste de Minas/Rede Mineira de Viação.
RB-15:
fabricado por Companhia Edificadora da Quinta do Caju, do Rio de Janeiro.
Demolido pela VLI-Multimodal S.A.
São poucas as imagens dos carros B-1 e B-11, mas são todas relativamente
recentes. A mais antiga do meu arquivo referente ao B-1 é da década de 1950, fase RMV, e do B-11 é de 1979, portanto, já da fase RFFSA
SR-2.
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Carro B-1 em Barbacena, MG, c.1950. Foto: acervo de César reis. |
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Carro B-11 pronto para a viagem, 1979. Foto: Walter Serralheiro. |
A segunda mais antiga do B-1 que temos, refere-se a uma excursão com estrangeiros de 1977, em que este aparece engatado ao carro administração A-3, como penúltimo do trem.
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Carro B-1 seguido do carro A-3 em excursão de 1977 ao passar pela estação de Ibitutinga. Foto: Fotografia à venda no Ebay. |
Outro registro do carro de Primeira Classe B-1 é de 1981, como calda de um trem misto parado na estação de Aureliano Mourão, em Bom Sucesso.
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Carro B-1 na plataforma da estação triangular de Aureliano Mourão, 1979. Foto: Walter Serralheiro. |
Em outra imagem, podemos ver o carro B-1 pintado com um tom diferente de vermelho, com tendência ao roxo, já nos últimos anos da década de 1980, portanto no período em pós conversão do trecho São João del-Rei-Tiradentes em museu, com trens chamados de "turísticos". Para variar, o B-1 seguia na calda da composição.
No livro de Paul Waters, "West of Minas Narrow Gauge", encontramos imagem do B-1 em 1998, fruto da visita que o viajante e entusiasta britânico realizou em São João del-Rei, ocasião em que testemunhamos essa visita.
Carro B-1 como primeiro carro do trem na estação de São João del-Rei, 1999. Foto: C. Schoff (como publicada no livro "West of Minas Narrow Gauge", de Paul Waters). |
Em 2000, o carro B-1 ainda era visto na composição do trem dito "turístico". Com a pintura descascada, mas em condições razoáveis de estrutura. Vale notar que as caixas de baterias J. Stone já haviam sido removidas.
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Carro B-1 em São João del-Rei. Foto: acervo de Jonas Martins. |
Já o carro B-11, retorna ao nosso arquivo já no ano de 1983, também registrado pelo viajante inglês Paul Waters e com imagem publicada em seu livro sobre a Estrada de Ferro Oeste de Minas.
Carro B-11 na plataforma da estação de São João del-Rei, 1983. Foto: Paul Waters. |
Em 2004, o carro B-11 encontrava-se em pesado processo de modificação na
carpintaria de São João del-Rei. Trabalho realizado por uma empresa chamada "Minas Móveis", responsável pela remoção do conjunto sanitário (banheiros, torneiras, pias e outros acessórios de bronze e cobre).
Carro B-11 na carpintaria do CFSJDR, 2004. Foto: Welber Santos. |
No Laudo de Vistoria nº 10/16-EAI IPHAN/MG, de 27/10/2016, o
então analista técnico do Escritório Técnico de Tiradentes, do IPHAN/MG, Olinto
Rodrigues, confunde o carro RB-11 com o carro B-11. Em comum, os dois possuem
apenas o 11 da série de cada matrícula. O carro RB-11 é um antigo carro
dormitório (série D) que foi convertido de dormitório de viagens (D) para
dormitório do serviço de Socorro (R), por isso o “RB”. Esse carro ainda traz as
características originais da planta de carro dormitório e, externamente, é um típico
carro construído nas oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas/Rede
Mineira de Viação (caixa idêntica aos carros B-3, B-8 e B-13). Inclusive, os
dois carros coexistiam até 2004.
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Carro RB-11 estocado na carpintaria do CFSJDR, 2016. Foto: IPHAN. |
O carro B-1 e o carro B-11 carregam todas as características dos carros fabricados pela Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro: janelas sem bandeiras superiores, para-choques mais finos e de ângulo reto, portas descentralizadas, corrimãos mais estreitos do que os dos carros de outras procedências.
Outra aparição mais recente do carro B-11, pouco anterior a 2004, foi sua disposição como enfeite de natal junto da locomotiva nº 21, na entrada da rotunda. Temos até mesmo um registro da Revista Ferroviária.
Carro B-11 na carpintaria do CFSJDR, 2004. Foto: Welber Santos. |
O mesmo Laudo de Vistoria nº 10/16-EAI IPHAN/MG, de 27/10/2016, traz mais uma confusão,esta sobre o carro B-1, também fabricado por Trajano de Medeiros & Cª. Nesse caso, o analista técnico Olinto Rodrigues afirma:
Com relação ao carro B-l, a partir dos documentos referenciados na Resolução n°01. a qual esse laudo responde, é citado que o bem aparece em listagem do termo de transferência n°009/2009. Em consulta a essa lista foi identificado que o bem cuja inscrição é B-l trata-se na verdade de um vagão tanque, e não de um carro de passageiros de 1ª classe (Foto 6). Tal informação entra em conformidade com o inventário desenvolvido pela empresa Grillo e Wernerck Consultoria e Projetos.
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Vagão tanque YB-1 que, segundo Olinto Rodrigues e Grillo & Werneck, é o verdadeiro carro de Primeira Classe B-1, 2016. Foto: IPHAN. |
Ou seja, tanto os técnicos do IPHAN quanto a empresa que venceu concorrência para elaborar projeto de restauração geral do CFSJDR não possuem profissionais com conhecimento sobre o objeto em análise. Uma conferência in loco, com acesso aos bens, e não conseguem contar veículos e nem elaborar um estudo para diferenciar carros de vagões, classes e categorias de material rodante em suas concepções mais básicas.
Não temos maiores informações e nos falta acesso aos bens, mas é possível desconfiar que o carro B-11 ou recebeu nova matrícula ou foi demolido. No entanto, nem FCA/VLI, que faz uso precário do sítio e opera o trem, nem IPHAN, que é cessionário desses bens, divulgam ou sabem qual foi seu destino após essas imagens de 2004.
[1] REDE
MINEIRA DE VIAÇÃO. Instruções para o Serviço de Movimento (ISM). Belo
Horizonte: Pap. e Typ. Brasil, 1939, pp. 9-10.
[2] O carro F-9 original foi um fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro.