quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Os carros da Estrada de Ferro Oeste de Minas que sumiram

Dois carros típicos de fabricação Trajano de Medeiros. Aba curva floreada, extremidade da cobertura em arco abatido e portas descentralizadas.

Carro e vagão são termos sinônimos e não há nada de errado em chamar de “vagões” os veículos rebocados que o jargão operacional ferroviário denomina como “carros”.

No sistema britânico, os veículos rebocados – ou seja, aqueles que não possuem tração própria – seguem, basicamente, dois tipos básicos: os “wagons”, que seriam aqueles utilizados para o transporte de mercadorias e materiais, e os “carriages”, que seriam aqueles utilizados para o transporte de pessoal e passageiros.

No sistema americano (ou estadunidense, como preferir), todos são “cars”. Há os “passenger cars” (carros de passageiros) e os “freight cars” (carros de carga).

No Brasil, convencionou-se chamar de “carros” aqueles veículos destinados ao transporte de passageiros e de pessoal da estrada e de “vagões” aqueles veículos destinados ao transporte de mercadorias e materiais.

Aqui, vamos focar nos carros; ou melhor, em dois carros específicos.

Os carros B-1 e B-11 da “bitolinha” de São João del-Rei.

As matrículas dos veículos rebocados provenientes da antiga Estrada de Ferro Oeste de Minas, que conhecemos até hoje, não são legadas dessa ferrovia formadora. Em 1938, o Decreto-Lei 132, de 23/09/1938, do Estado de MG, extinguiu a Estrada de Ferro Oeste de Minas e a Estrada de Ferro Sul de Minas (ex-Rede de Viação Sul-Mineira). Em 1939, foram publicadas as Instruções para o Serviço do Movimento (ISM) que, entre outras definições, estabeleceram os códigos de matrícula para material rodante.

Apesar de ter integrado a Rede Ferroviária Federal S.A., a malha em bitola de 762 mm não recebeu novas matrículas para seu material rodante nem mesmo com o estabelecimento do Sistema Integrado de Gestão Operacional (SIGO). Ao menos é o que percebemos ao observá-los no Complexo Ferroviário de São João del-Rei (CFSJDR) e no trajeto até Tiradentes, único trecho percorrido por eles desde 1984.

A matrícula de cada item de material rodante, apesar de servir como um nome para cada um, tem uma importância maior. Ela é uma identidade operacional e um registro de patrimônio. Não deve ser alterada sob nenhuma hipótese, a não ser em caso de se fazer um sólido registro documental para reconfigurar o bem em um momento histórico anterior.

Como dizíamos, as denominações e classificações mantidas pela “bitolinha” são as mesmas encontradas no documento RMV - Instruções para o Serviço de Movimento, de 1939:

Denominam-se carros os veículos destinados ao transporte de passageiros, condutores de trens, correio e bagagem e aos serviços da Administração, de socorro, alojamento do pessoal e restaurante. São classificados: Série A – Administração; Série B – 1ª classe para passageiros; Série C – 2ª classe para passageiros; Série D – Dormitório, Série E – Mixto (1ª e 2ª classes); Série F – Bagagem, correios e chefe do trem, correio e bagagem; Série G – Restaurante; Série H – Bagagem e animais; Série I – Salão; Série J – Transporte de cadáveres; Série R – Socorro e alojamento do pessoal.[1]

Entre os carros “sobreviventes” após 1984, e que formam o acervo do CFSJDR, temos:

Administração/Especial:

A-3: fabricado por Harlan & Hollingsworth, de Wilmington Delaware, EUA, originalmente Primeira Classe, reconstruído como Especial (Administração) nas oficinas de São João del-Rei.

A-5: fabricante ainda não determinado (carece de inspeção), potencialmente H&H, também.

A-6:  fabricante ainda não determinado (carece de inspeção), potencialmente H&H, também.

A-7: construído nas Oficinas de Lavras da Rede Mineira de Viação.

Primeira Classe:

B-1: fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro.

B-2: fabricado por Companhia Edificadora da Quinta do Caju, do Rio de Janeiro.

B-3: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas/Rede Mineira de Viação.

B-5: fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro.

B-8: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas/Rede Mineira de Viação.

B-11: fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro.

B-13: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas/Rede Mineira de Viação.

B-14: fabricado por Companhia Edificadora da Quinta do Caju, do Rio de Janeiro.

Segunda Classe:

C-1: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

C-8: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

C-9: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

C-10: fabricado por Companhia Edificadora da Quinta do Caju, do Rio de Janeiro.

C-13: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

C-16: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas (atualmente classificado como G-1 – adaptado como carro restaurante em 1984 para a Minissérie Rabo de Saia, inspirada no livro "Pensão Riso da Noite", de José Condé, permanecendo assim).

C-17: fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro.

Mistos:

E-4: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

E-7: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

Bagagem, Correios e Chefe do Trem:

F-7: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

F-8 (rematriculado ainda pela RFFSA como F-9[2]): construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

Socorro:

RA-6: fabricado por Lancaster Railway Carriage and Wagon Co., de Londres, Inglaterra.

RB-11: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas/Rede Mineira de Viação.

RB-15: fabricado por Companhia Edificadora da Quinta do Caju, do Rio de Janeiro. Demolido pela VLI-Multimodal S.A.

São poucas as imagens dos carros B-1 e B-11, mas são todas relativamente recentes. A mais antiga do meu arquivo referente ao B-1 é da década de 1950, fase RMV, e do B-11 é de 1979, portanto, já da fase RFFSA SR-2.

Carro B-1 em Barbacena, MG, c.1950. Foto: acervo de César reis.

Carro B-11 pronto para a viagem, 1979. Foto: Walter Serralheiro.

A segunda mais antiga do B-1 que temos, refere-se a uma excursão com estrangeiros de 1977, em que este aparece engatado ao carro administração A-3, como penúltimo do trem.

Carro B-1 seguido do carro A-3 em excursão de 1977 ao passar pela estação de Ibitutinga. Foto: Fotografia à venda no Ebay.

Outro registro do carro de Primeira Classe B-1 é de 1981, como calda de um trem misto parado na estação de Aureliano Mourão, em Bom Sucesso.

Carro B-1 na plataforma da estação triangular de Aureliano Mourão, 1979. Foto: Walter Serralheiro.

Em outra imagem, podemos ver o carro B-1 pintado com um tom diferente de vermelho, com tendência ao roxo, já nos últimos anos da década de 1980, portanto no período em pós conversão do trecho São João del-Rei-Tiradentes em museu, com trens chamados de "turísticos". Para variar, o B-1 seguia na calda da composição.

Carro B-1 em Tiradentes, c.1990. Notar a via permanente refeita pelo PRESERVE-MT, recuperando o conceito de VP com lastro de cascalho do Rio das Mortes (seixo rolado) estabelecido por volta de 1910. Foto: Christopher Beyer.

No livro de Paul Waters, "West of Minas Narrow Gauge", encontramos imagem do B-1 em 1998, fruto da visita que o viajante e entusiasta britânico realizou em São João del-Rei, ocasião em que testemunhamos essa visita. 

Carro B-1 como primeiro carro do trem na estação de São João del-Rei, 1999. Foto: C. Schoff (como publicada no livro "West of Minas Narrow Gauge", de Paul Waters).

Em 2000, o carro B-1 ainda era visto na composição do trem dito "turístico". Com a pintura descascada, mas em condições razoáveis de estrutura. Vale notar que as caixas de baterias J. Stone já haviam sido removidas. 

Carro B-1 em São João del-Rei. Foto: acervo de Jonas Martins.

Já o carro B-11, retorna ao nosso arquivo já no ano de 1983, também registrado pelo viajante inglês Paul Waters e com imagem publicada em seu livro sobre a Estrada de Ferro Oeste de Minas.

Carro B-11 na plataforma da estação de São João del-Rei, 1983. Foto: Paul Waters.

Em 2004, o carro B-11 encontrava-se em pesado processo de modificação na carpintaria de São João del-Rei. Trabalho realizado por uma empresa chamada "Minas Móveis", responsável pela remoção do conjunto sanitário (banheiros, torneiras, pias e outros acessórios de bronze e cobre).

Carro B-11 na carpintaria do CFSJDR, 2004. Foto: Welber Santos.

No Laudo de Vistoria nº 10/16-EAI IPHAN/MG, de 27/10/2016, o então analista técnico do Escritório Técnico de Tiradentes, do IPHAN/MG, Olinto Rodrigues, confunde o carro RB-11 com o carro B-11. Em comum, os dois possuem apenas o 11 da série de cada matrícula. O carro RB-11 é um antigo carro dormitório (série D) que foi convertido de dormitório de viagens (D) para dormitório do serviço de Socorro (R), por isso o “RB”. Esse carro ainda traz as características originais da planta de carro dormitório e, externamente, é um típico carro construído nas oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas/Rede Mineira de Viação (caixa idêntica aos carros B-3, B-8 e B-13). Inclusive, os dois carros coexistiam até 2004.

Carro RB-11 estocado na carpintaria do CFSJDR, 2016. Foto: IPHAN.

O carro B-1 e o carro B-11 carregam todas as características dos carros fabricados pela Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro: janelas sem bandeiras superiores, para-choques mais finos e de ângulo reto, portas descentralizadas, corrimãos mais estreitos do que os dos carros de outras procedências.

Outra aparição mais recente do carro B-11, pouco anterior a 2004, foi sua disposição como enfeite de natal junto da locomotiva nº 21, na entrada da rotunda. Temos até mesmo um registro da Revista Ferroviária.

Outra aparição mais recente do carro B-11, pouco anterior a 2004, foi sua disposição como enfeite de natal junto da locomotiva nº 21, na entrada da rotunda. Temos até mesmo um registro da Revista Ferroviária.


Carro B-11 na carpintaria do CFSJDR, 2004. Foto: Welber Santos.

O mesmo Laudo de Vistoria nº 10/16-EAI IPHAN/MG, de 27/10/2016, traz mais uma confusão,esta sobre o carro B-1, também fabricado por Trajano de Medeiros & Cª. Nesse caso, o analista técnico Olinto Rodrigues afirma:

Com relação ao carro B-l, a partir dos documentos referenciados na Resolução n°01. a qual esse laudo responde, é citado que o bem aparece em listagem do termo de transferência n°009/2009. Em consulta a essa lista foi identificado que o bem cuja inscrição é B-l trata-se na verdade de um vagão tanque, e não de um carro de passageiros de 1ª classe (Foto 6). Tal informação entra em conformidade com o inventário desenvolvido pela empresa Grillo e Wernerck Consultoria e Projetos.

Vagão tanque YB-1 que, segundo Olinto Rodrigues e Grillo & Werneck, é o verdadeiro carro de Primeira Classe B-1, 2016. Foto: IPHAN.

Ou seja, tanto os técnicos do IPHAN quanto a empresa que venceu concorrência para elaborar projeto de restauração geral do CFSJDR não possuem profissionais com conhecimento sobre o objeto em análise. Uma conferência in loco, com acesso aos bens, e não conseguem contar veículos e nem elaborar um estudo para diferenciar carros de vagões, classes e categorias de material rodante em suas concepções mais básicas.

Não temos maiores informações e nos falta acesso aos bens, mas é possível desconfiar que o carro B-11 ou recebeu nova matrícula ou foi demolido. No entanto, nem FCA/VLI, que faz uso precário do sítio e opera o trem, nem IPHAN, que é cessionário desses bens, divulgam ou sabem qual foi seu destino após essas imagens de 2004.

Ilustração comparativa entre um carro Trajano de Medeiros & Cª (B-1, B-5, B-11 e C-17) e um carro construído nas oficinas de Lavras E.F.O.M./R.M.V. com colunas de madeira nas plataformas (B-3, B-8, B-13 e RB-11). Para um leigo, podem até parecer iguais, mas para um olho mais atento, as diferenças se tornam óbvias. Desenho (provisório): Welber Santos.

[1] REDE MINEIRA DE VIAÇÃO. Instruções para o Serviço de Movimento (ISM). Belo Horizonte: Pap. e Typ. Brasil, 1939, pp. 9-10.

[2] O carro F-9 original foi um fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro.

Para quem se interessa, o complemento do ISM-RMV sobre as categorias de material rodante:
§ 3º Denominam-se vagões os veículos fechados destinados ao transporte de mercadorias. São classificados: Série S – Frigoríficos (para leite etc.); Série T – Inflamáveis; Série U – Grãos (trigo etc.); Série V – Mercadorias em geral e de armazém; Série W – Automóveis etc; Série X – Coletores./ § 4º - Denominam-se gaiolas os veículos destinados ao transporte de animais. São classificados: Serie K – Bovinos; Série L – (com dois andares) Suínos./§ 5º - Denominam-se gôndolas os veículos abertos com bordas e destinados ao transporte de mercadorias de pátio, como areia, pedra, carvão, minério, tijolos etc. São classificados: Serie M – Com bordas altas; Série N – Metálicas, com bordas; Série O – Com grades altas nas cabeceiras; Série P – Com bordas baixas./§ 6º - Denominam-se pranchas os veículos abertos, contendo fueiros, destinados ao transporte de mercadorias de pátio, como lenha, madeira, trilhos etc. São classificados na série Q./§ 7º - Os vagões, gaiolas, gôndolas e pranchas além das letras indicativas das séries, têm, imediatamente juntas a estas, outras que indicam a lotação respectiva, a saber: A - 8.000 kg, B - 12.000, C - 18.000, D - 24.000 e E - 30.000 kg. Fonte: REDE MINEIRA DE VIAÇÃO. Instruções para o Serviço de Movimento (ISM). Belo Horizonte: Pap. e Typ. Brasil, 1939, pp. 9-10.
N. do A.: a série Y, referente aos tanques para transporte de óleo BPF (Baixo Ponto de Fluidez), foi criada posteriormente, já que a adaptação das locomotivas para a queima desse tipo de óleo em substituição à lenha e ao carvão ocorreu a partir da década de 1950.
Nessa série encontra-se o tanque YB-11, confundido com o carro B-11 pelo pessoal do IPHAN e do escritório de arquitetura e engenharia Grillo & Werneck.

domingo, 2 de julho de 2023

Princípios comuns ICOMOS – TICCIH para a Conservação de Sítios, Estruturas, Áreas e Paisagens do Patrimônio Industrial

Princípios comuns ICOMOS – TICCIH para a Conservação de Sítios, Estruturas, Áreas e Paisagens do Patrimônio Industrial

«Os Princípios de Dublin»

Adotados pela 17ª Assembleia Geral do ICOMOS em 28 de novembro de 2011

PREÂMBULO

Em todo o mundo, diversos sítios, estruturas, complexos, cidades e assentamentos, áreas, paisagens e rotas testemunham as atividades humanas de extração e produção industrial.  Em muitos lugares, esse patrimônio ainda está em operação e a industrialização ainda é um processo ativo com um sentido de continuidade histórica, enquanto que, em outros lugares, oferece evidências arqueológicas de atividades e tecnologias passadas. Ao patrimônio material associado a tecnologias e processos industriais, engenharia, arquitetura e planejamento urbano, soma-se um patrimônio imaterial incorporado às habilidades técnicas, memórias e na vida social dos trabalhadores e de suas comunidades.

O processo global de industrialização observado durante os dois últimos séculos constitui uma grande etapa da história da humanidade, tornando seu patrimônio especialmente importante para o Mundo Contemporâneo.  Os precursores e os estágios iniciais da industrialização podem ser reconhecidos em muitas partes do mundo, remontando-se à antiguidade por meio de sítios ativos ou arqueológicos, e nossa atenção volta-se a qualquer exemplo de tal processo e seu patrimônio. Entretanto, para os propósitos deste conjunto de princípios, o interesse primordial coincide com os conceitos reconhecidos de Revolução Industrial para o Mundo Contemporâneo, marcado pelo desenvolvimento e utilização de processos e tecnologia com respeito a produção, transporte, geração de energia, intercâmbios comerciais e novos padrões sociais e culturais.

O patrimônio industrial é extremamente vulnerável e está em risco constante, sendo frequentemente perdido não só pela falta de conscientização,  documentação, reconhecimento ou proteção, mas também pelas mudanças de tendências econômicas, percepções negativas, questões ambientais ou por sua grande dimensão e complexidade. Contudo, ao estender o ciclo de vida das estruturas existentes e o gasto de energia investido, a conservação do patrimônio industrial construído pode contribuir para alcançar a meta de um desenvolvimento sustentável em nível local, nacional e internacional, afetando tanto os aspectos sociais quanto os aspectos físicos e ambientais do desenvolvimento, devendo ser reconhecida por isso.

Nas últimas décadas, o avanço das pesquisas, a cooperação internacional e interdisciplinar e as iniciativas da comunidade contribuíram consideravelmente para uma melhor valorização do patrimônio industrial e o aumento da colaboração entre os responsáveis legais,  as partes interessadas e os especialistas em preservação. Também contribuíram para esse progresso o desenvolvimento de um corpus de referências e diretrizes internacionais pelo ICOMOS – o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – e a implementação de recomendações internacionais e instrumentos, como a Convenção do Patrimônio Mundial, adotada pela UNESCO em 1972. Em 2003, a Comissão Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial (TICCIH) adotou a Carta de Nizhny Tagil sobre o Patrimônio Industrial, o primeiro texto de referência internacional para orientar a proteção e conservação nesse campo.

Reconhecendo a natureza particular do patrimônio industrial e as questões e ameaças que o afetam, como resultado de sua relação com contextos legais, culturais, ambientais e econômicos contemporâneos, o ICOMOS  e o TICCIH desejam ampliar sua cooperação ao adotarem e promoverem a disseminação do uso dos seguintes Princípios para auxiliar na documentação, proteção, conservação e valorização do patrimônio industrial como parte do patrimônio das sociedades humanas de todo o mundo.  

  1.     Definição: O patrimônio industrial compreende sítios, estruturas, complexos, áreas e paisagens assim como maquinaria, objetos ou documentos relacionados que fornecem evidências dos processos de produção industrial passados ou em desenvolvimento, da extração de matéria-prima, de sua transformação em bens de consumo das infraestruturas de transporte e de energia relacionadas. O patrimônio industrial reflete a profunda conexão entre o ambiente cultural e natural, uma vez que os processos industriais – sejam antigos ou modernos – dependem de fontes naturais de matéria-prima, energia e redes de transporte para produzir e distribuir produtos para outros mercados.  Esse patrimônio contempla tanto os bens materiais – imóveis e móveis – quanto as dimensões intangíveis, tais como o conhecimento técnico, a organização do trabalho e dos trabalhadores e o complexo legado social e cultural que moldou a vida de comunidades e provocou grandes mudanças organizacionais em sociedades inteiras e no mundo em geral.
  2.     Os sítios de patrimônio industrial são muito diversificados em termos de função, projeto e evolução. Muitos são representativos de processos e tecnologias, assim como de condições regionais ou históricas, enquanto que outros constituem  grandes realizações de alcance global. Outros são complexos industriais com operações distribuídas em diferentes lugares ou são sistemas cujos componentes são interdependente frequentemente de tecnologias e períodos históricos diferentes.  O significado e o valor do patrimônio industrial são intrínsecos aos próprios sítios e estruturas, seu material construtivo, componentes, maquinaria e disposição, expressos na paisagem industrial, em documentos textuais e também nos registros intangíveis contidos nas memórias, nas artes e nos costumes.

I ‐ Documentar e entender estruturas, sítios, áreas e paisagens industriais e seus valores

  1.     Pesquisar e documentar estruturas, sítios e paisagens industriais e  maquinaria, equipamento, registros ou aspectos intangíveis relacionados é essencial para a sua identificação, conservação e  reconhecimento de seu significado e valor patrimonial. As habilidades e os conhecimentos humanos envolvidos em antigos processos industriais são recursos extremamente importantes para a conservação e devem ser considerados no processo de avaliação patrimonial.
  2.     A pesquisa e a documentação de sítios e estruturas do patrimônio industrial devem contemplar suas dimensões históricas, tecnológicas e socioeconômicas para oferecer uma base integrada para sua conservação e sua gestão, sendo necessária uma abordagem interdisciplinar sustentada por  pesquisas interdisciplinares e programas educativos para identificar o significado de sítios e estruturas de patrimônio industrial. Diversas fontes de conhecimento e informação devem ser utilizadas, incluindo coleta de campo e registro, investigação histórica e arqueológica, análise de material e paisagem,  história oral e/ou pesquisa em arquivos públicos, de empresas ou privados. A pesquisa e preservação de registros documentais, arquivos de empresas, plantas de edifícios e exemplares de produtos industriais devem ser incentivadas. A avaliação e análise de documentos devem ser realizadas por um especialista da respectiva área industrial para determinar seu significado patrimonial. A participação das comunidades e de outras partes interessadas também é uma parte essencial dessa atividade.
  3.     É necessário um conhecimento profundo da história industrial e socioeconômica de uma área ou país, assim como de suas relações com outras partes do mundo para compreender o significado de sítios ou estruturas de patrimônio industrial. Contextos industriais particulares, estudos tipológicos ou regionais, com um componente comparativo, dirigidos a setores ou tecnologias industriais chave são muito úteis no reconhecimento dos valores patrimoniais inerentes a estruturas, sítios, áreas ou paisagens individuais, devendo ser acessíveis ao público, aos acadêmicos e gestores para buscas e consultas.

II ‐  Assegurar uma efetiva proteção e conservação de estruturas, sítios, áreas e paisagens de patrimônio industrial  

  1.     Políticas apropriadas e medidas legais e administrativas precisam ser adotadas e adequadamente implementadas para proteger e assegurar a conservação de sítios e estruturas de patrimônio industrial, incluindo sua maquinaria e documentos. Essas medidas devem contemplar a estreita relação entre patrimônio industrial, produção industrial e economia, especialmente no que se refere a regras para empresas e investimentos, transações comerciais ou propriedade intelectual, tais como patentes e normas aplicáveis a operações industriais ativas.
  2.     Inventários integrados e listas de estruturas, sítios, áreas e paisagens, sua disposição e objetos, documentos, desenhos e arquivos associados ou patrimônio intangível devem ser desenvolvidos e utilizados como parte dessas políticas efetivas de conservação e gestão e medidas de proteção. Esses bens devem receber um reconhecimento legal, conservação e gestão adequadas para assegurar que seu significado, integridade e autenticidade sejam mantidos. No caso de patrimônio industrial identificado por meio de descoberta fortuita, deve-se conceder uma proteção temporária até que seja possível realizar a pesquisa e documentação patrimonial de modo adequado.  
  3.     No caso de estruturas ou sítios industriais ativos de significado patrimonial, deve-se reconhecer que seu uso e funcionamento contínuo podem conter parte de seu significado patrimonial e oferecer condições adequadas para sua sustentabilidade física e econômica como instalações de produção ou extração ativas.  Suas características técnicas específicas devem ser respeitadas ao se implementar as regulamentações atuais, tais como códigos de construção, exigências ambientais ou estratégias de redução de risco para lidar com ameaças de origem natural ou humana.
  4.     Medidas de proteção devem ser aplicadas a edifícios e seu conteúdo visto que a totalidade do conjunto e sua integridade funcional são especialmente importantes para o significado das estruturas e dos sítios de patrimônio industrial. Seu valor patrimonial pode ser gravemente ameaçado ou reduzido se a maquinaria ou outros componentes importantes forem removidos ou se elementos subsidiários que formam parte do todo forem destruídos. Meios legais e administrativos devem ser desenvolvidos para possibilitar que as autoridades respondam rapidamente ao fechamento de sítios e complexos de patrimônio industrial em operação de modo a evitar a remoção ou destruição de elementos significativos, tais como maquinaria, objetos industriais e documentos relacionados.

III ‐  Conservar e manter estruturas, sítios, áreas e paisagens de patrimônio industrial

  1.  O uso original ou  sua readequação é o modo mais frequente e geralmente mais sustentável de assegurar a conservação de estruturas e sítios de patrimônio industrial. Os novos usos devem respeitar os materiais significativos, componentes e padrões de circulação e atividade.  É necessário um conhecimento especializado para assegurar que o significado patrimonial seja considerado e respeitado na gestão do uso sustentável de estruturas e sítios de patrimônio industrial. As normas de construção, exigências de segurança, normas ambientais ou industriais e outras regulamentações devem ser adequadamente implementadas nas intervenções físicas, levando em consideração as dimensões patrimoniais.  
  2.  Sempre que possível, as intervenções físicas devem ser reversíveis, respeitar o valor temporal  e marcas ou traços significativos. As alterações devem ser documentadas. A reversão a um estado anterior conhecido é aceitável em circunstâncias excepcionais com fins educativos, devendo ser baseada em documentação e pesquisa exaustiva. A desmontagem e realocação apenas são aceitáveis em casos extraordinários, em que necessidades econômicas ou sociais imprescindíveis e objetivamente comprovadas exigem a destruição do sítio.
  3.  Em caso de iminente obsolescência, desativação e/ou adaptação de estruturas e sítios de patrimônio industrial, os processos devem ser registrados, incluindo, por exemplo, onde os componentes têm de ser demolidos e a maquinaria removida. Tanto sua forma material quanto seu funcionamento e localização, como parte dos processos industriais, devem ser exaustivamente documentados. Os relatos orais e/ou escritos de pessoas ligadas aos processos de trabalho também devem ser coletados.  

IV ‐ Apresentar e difundir as dimensões e os valores de estruturas, sítios, áreas e paisagens industriais para aumentar a conscientização pública e empresarial e apoiar treinamentos e pesquisas

  1.  O patrimônio industrial é uma fonte de aprendizado que precisa ser difundida em suas múltiplas dimensões. Ilustra aspectos importantes da história local, nacional e internacional e as interações através dos tempos e das culturas. Demonstra a capacidade criativa relacionada aos avanços científicos e tecnológicos, assim como aos movimentos sociais e artísticos. A conscientização e a compreensão pública e empresarial sobre o patrimônio industrial são meios importantes para o sucesso de sua conservação.  
  2.  Programas, equipamentos e outros recursos – como visitas a sítios ativos de patrimônio industrial e a apresentação de suas operações, relatos e patrimônio intangível associados a sua história, maquinaria e processos industriais, museus industriais ou de cidades e centros de interpretação,  exposições, publicações, websites, itinerários regionais ou transfronteiriços – devem ser desenvolvidos e mantidos como meios de promover a conscientização e a valorização do patrimônio industrial em toda sua riqueza de significados para as sociedades contemporâneas. O ideal é que estejam localizados nos próprios sítios patrimoniais onde se deu o processo de industrialização e nos quais podem ser melhor difundidos. Sempre que possível, as instituições nacionais e internacionais da área de pesquisa e conservação do patrimônio devem ser autorizadas a usá-los como recursos educacionais para o público em geral e para as comunidades de profissionais.

[Tradução para o português-Brasil: Ivanir Azevedo Delvizio, Eduardo Romero de Oliveira]

sexta-feira, 19 de maio de 2023

As placas BLW encontradas no Módulo I do Museu Ferroviário de São João del-Rei

 

Os inventários de bens móveis dos museus do interior do Brasil costumam ser problemáticos devido à falta de profissionais capacitados e especializados, sobretudo pesquisadores das áreas afins aos temas das instituições. E, no caso de bens ferroviários, mesmo os pesquisadores em ciências humanas de forma generalizada são ainda insuficientes para determinados levantamentos. Um caso que nos ajuda a compreender esse ponto é o conjunto de placas de fabricação remanescentes de locomotivas Baldwin Locomotive Works encontradas no museu ferroviário de São João del-Rei. Apesar de o museu ter sido inaugurado em 1981, parte de seu acervo carece de informações mais refinadas. Esses itens são apenas exemplos, já que o restante do acervo ainda está por conhecer sua própria história.

As placas

33855

A placa 33855 pertenceu a uma locomotiva do tipo Consolidation (2-8-0) da Estrada de Ferro Oeste de Minas, matrícula 11 da malha em bitola métrica: BLW classe 10-24E 169, de outubro de 1909. Esta locomotiva foi renumerada como 209 em 1920, ainda na EFOM, e 419 em 1938, já na Rede Mineira de Viação.

Fotografia da locomotiva EFOM 11, futura EFOM 209 e RMV 419 em local não identificado. É possível que o contexto seja a entrega da locomotiva ao destinatário ou a montagem em Ribeirão Vermelho (as oficinas de Divinópolis ainda não existiam em 1912). O tender da imagem pertencia a uma das 4-4-0 ou 4-6-0 da “bitolinha”, encomendadas e fabricadas na mesma leva. Acervo de Hugo Caramuru.

Fotografia da locomotiva RMV-Oeste 209, ex-EFOM 11 e futura RMV 419. Acervo de Hugo Caramuru.


Fotografia da locomotiva RMV 419, ex-EFOM 11 e ex-EFOM 209. Pátio da estação de Ibiá, c. 1940. Coleção e acervo de Onildo Monteiro.

33856

A placa 33856 pertenceu a outra locomotiva do tipo Consolidation (2-8-0) da Estrada de Ferro Oeste de Minas, matrícula 12 da malha em bitola métrica: BLW classe 10-24E 170, de outubro de 1909. Esta locomotiva foi renumerada como 210 em 1920, ainda na EFOM, e 420 em 1938, já na Rede Mineira de Viação.

Fotografia de fábrica da EFOM 12, futura EFOM 210 e RMV 420. Fonte: Railroad Museum of Pennsylvania, Library and Archives.

Fotografia da locomotiva RMV 420, ex-EFOM 12 e ex-EFOM 210. Foto de Haraldo Graccho Prado.

 38155

A placa 38155 pertenceu a uma locomotiva do tipo Mikado (2-8-2) da Estrada de Ferro Oeste de Minas, matrícula 100 da malha em bitola métrica: BLW classe 12-28 ¼ E 2, de agosto de 1912. Esta locomotiva, incrivelmente, não chegou à Rede Mineira de Viação. Por enquanto, é um mistério o fato de esta placa ter chegado até nós. Nenhum pesquisador do meio conseguiu rastrear os caminhos tomados por esta locomotiva.

 

Fotografia de fábrica da EFOM 100. Fonte: Railroad Museum of Pennsylvania, Library and Archives.

38156

A placa 38156 pertenceu a uma locomotiva do tipo Mikado (2-8-2) da Estrada de Ferro Oeste de Minas, matrícula 101 da malha em bitola métrica: BLW classe 12-28 ¼ E 3, de agosto de 1912. Mesmo caso da EFOM 100.

58881

A placa 58881 pertenceu a uma locomotiva do tipo Pacific (4-6-2) da Estrada de Ferro Oeste de Minas, matrícula 167 da malha em bitola métrica: BLW classe 12-26 ¼ D 26, de dezembro de 1925. Esta locomotiva foi renumerada como 335, em 1938, pela Rede Mineira de Viação.

Locomotiva RMV 335, ex-EFOM 167. Acervo de José Expedito Assunção.

37516

A placa 37516 pertenceu a uma locomotiva do tipo Consolidation (2-8-0) da Companhia Estradas de Ferro Federais Rede Sul Mineira (RSM), matrícula 66: BLW classe 10-24E 177, de fevereiro de 1912. Esta locomotiva foi renumerada como 221 pela Rede de Viação Sul Mineira (RVSM) e como 430, em 1938, pela Rede Mineira de Viação.


Fotografia da locomotiva RMV 430, ex-RSM 66 e ex-RVSM 221. Acervo de Hugo Caramuru.

57377

A placa 57377 pertenceu a uma locomotiva do tipo Ten-wheeler (4-6-0) da Rede de Viação Sul Mineira (RVSM), matrícula 176: BLW classe 10-26D 364, de outubro de 1923. Esta locomotiva foi renumerada como 249, em 1938, pela Rede Mineira de Viação.

Fotografia da locomotiva RMV 249, ex-RVSM 176 na ocasião do aniversário de 35 anos de serviço do maquinista Sr. José Modesto. Depósito de Passa Quatro, MG (informação de Felipe Sanches, da ABPF Sul de Minas). Acervo de Hugo Caramuru.

56924

A placa 56924 pertenceu a uma locomotiva do tipo Consolidation (2-8-0) da Rede de Viação Sul Mineira (RVSM), matrícula 271: BLW classe 10-30E 208, de agosto de 1923. Esta locomotiva foi renumerada como 231, em 1931, pela Estrada de Ferro Sul de Minas (RMV-Sul) e como 436, em 1938, pela Rede Mineira de Viação.

Fotografia da locomotiva RMV-Sul 231, ex-RVSM 271 e futura RMV 436. Triângulo de Passa Quatro (informação de Felipe Sanches, da ABPF Sul de Minas). Acervo de Hugo Caramuru.

Fotografia da locomotiva RMV 436, ex-RVSM 271 e ex-RMV-Sul 231. Triângulo de Passa Quatro, MG (informação de Felipe Sanches, da ABPF Sul de Minas). Acervo de Hugo Caramuru.

 

Resumo


Contribuições de Felipe Sanches e Jonas A. Martins de Carvalho, da ABPF-Sul de Minas e NEOM-ABPF.

Fontes:

CARAMURU, Hugo IN PIMENTA, D. J., ELEUTÉRIO, A. B., CARAMURU, Hugo. As Ferrovias em Minas Gerais. Belo Horizonte: SESC/MG, 2003.

LIMA, Vasco de Castro. A Estrada de Ferro Sul de Minas 1884-1934. São Paulo: Copas, 1934.

SMU. DeGolyer Library. Railroads - Photographs, Manuscripts, and Imprints: Baldwin Locomotive Works engine specifications, 1869-1938. Disponível em: <https://digitalcollections.smu.edu/digital/collection/rwy/id/32>. Acessado a partir de: 30/07/2013;

SMU. DeGolyer Library. Railroads - Photographs, Manuscripts, and Imprints: Baldwin Locomotive Works, Index of Companies, Construction Numbers from 30000 to 34999, January 1907 to July 1910.

SMU. DeGolyer Library. Railroads - Photographs, Manuscripts, and Imprints: Baldwin Locomotive Works, Index of Companies, Construction Numbers from 35000 to 39999, July 1910 to July 1913.

Railroads - Photographs, Manuscripts, and Imprints: Baldwin Locomotive Works, Index of Companies, Construction Numbers from 55000 to 59999, September 1921 to May 1927.

Disponíveis em: <https://digitalcollections.smu.edu/digital/collection/rwy/search/searchterm/indexes!Baldwin%20Locomotive%20Works%20records/field/formge!part/mode/exact!exact/conn/and!and/order/upload/ad/asc>. Acessados em: 10/05/2020.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

A simbologia da fotografia de uma locomotiva da E. F. D. Pedro II na Philadelphia Exhibition de 1876

Tecnologia, “segundo escravismo” e americanização ferroviária no Brasil

Em seu livro “A Força da Escravidão”, o historiador Sidney Chalhoub traduziu o conceito “second slavery” - elaborado por Dale Tomich - como “segundo escravismo”. Na minha tese de doutorado, utilizei “segunda escravidão”, conforme acabou sendo definido pela historiografia posteriormente. Independentemente da tradução, o sentido é o mesmo: “second  slavery” refere-se a uma interpretação do fenômeno iniciado no século XVIII e fortemente estabelecido no XIX referente ao novo fôlego tomado pela instituição escravista nas Américas.

O recrusdescimento da escravidão moderna, ou seja, o revigoramento da prática de manter seres humanos como propriedade no mundo pós grandes revoluções teve completa ligação com a expansão do capitalismo industrial.

No contexto do segundo escravismo encontramos a manutenção do tráfico transatlântico depois da Lei de 7 de novembro de 1831, que estabelecia como “livres todos os escravos vindos de fora do Império, e imp[unha] penas aos importadores dos mesmos escravos” e a utilização dessa população nos meios de produção de primários (monoculturas) para o mercado externo, em especial o algodão, o açúcar e o café.

Desde a Lei de 1831, a escravidão brasileira era uma instituição “forte” - como saliente o título do Sidney Chalhoub - mas oficialmente envergonhada. Explico: 

Quando iniciei minha pesquisa para escrever a tese de doutorado, comecei, como é de praxe, do começo; ou seja, investigando a documentação de estado. Meu objeto era a construção de estradas de ferro no território do Império do Brasil e sua relação com a expansão global desse tipo de estrutura de transporte. Como uma invenção reconhecidamente britânica, é de comum conhecimento que a construção de ferrovias fora da Grã-Bretanha teve forte participação de agentes britânicos e o fornecimento de equipamento pela indústria britânica. Do mesmo modo, muitas ferrovias construídas fora da Grã-Bretanha foram construídas e operadas por companhias com sede em Londres.

Foi assim que a Companhia Estrada de Ferro Dom Pedro II iniciou sua trajetória, como uma concessão contratada com o escocês Thomas Cochrane - o mesmo médico que apresentou ao Brasil a homeopatia (cof cof cof...) - em 1840. Também, a Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis foi fundada por Irineu Evangelista de Souza com financiamento do Banco Carruthers, de Castro & Co., sediado em Manchester, e aquidição de equipamento na mesma cidade inglesa.

Ao pesquisar os relatórios ministeriais referentes às obras públicas (Ministério do Império e, a partir de 1860, Ministério da Agricultura), os relatórios da Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II (1856-1865) e da Estrada de Ferro D. Pedro II como departamento do estado imperial (1866-1889), os jornais de 1835 a 1889 e a autobiografia de Cristiano Otoni (presidente da CEFDPII), o investigador quase acredita que a principal estrada de ferro do Brasil era um oasis antiescravista no Império.

De fato, os empreiteiros e engenheiros contratados para construir a primeira seção da EFDPII, os ingleses Edward Price, Charles Edward Austin e Samuel Bayliss, colocaram uma cláusula que impedia o uso de mão de obra escrava no contrato. Exigiam e, tudo indica, empregaram apenas jornaleiros livres.

Cristiano Otoni, conhecido republicano e famoso abolicionista, como presidente da companhia, era inimigo público declarado dos ingleses. A justificativa do mineiro era a de que esses ingleses impuseram cláusulas ultra danosas aos cofres da companhia e que, para a segunda seção e seguintes os contratos deveriam ser feitos com americanos.

Para contratar os americanos, Otoni citava sempre a capacidade técnica apropriada para vencer nossas serras com custos reduzidos, como esses americanos faziam nas Alleghenies (parte dos Montes Apalaches). Ele manteve esse argumento tanto nos relatórios da CEFDPII (1856-1865) quanto em sua autobiografia, escrita após 1889.

O que os documentos oficiais omitiam e os historiadores brasileiros até agora não discutiam, a historiografia internacional veio informar (diria até, denunciar): o que Cristiano Otoni, os ministérios do Império e os jornais do século XIX tentaram apagar para a posteridade é o fato de que a opção pelos engenheiros dos Estados Unidos era a aplicação de mão de obra escrava para construir a Estrada de Ferro D. Pedro II.

No início dos anos 1850, quando nova conjuntura política interna e externa levaria à interrupção definitiva do negócio dos tumbeiros, quiçá a metade da população escrava em idade produtiva existente no país fosse constituída por africanos ilegalmente escravizados e seus descendentes; essa taxa de ilegalidade da escravidão era decerto muito mais alta nas fazendas de café do Vale do Paraíba, para onde afluíram em massa os africanos chegados após a lei de 1831.[1]

A fotografia aqui apresentada consta apenas nos arquivos da Exibição de 1876 de Filadélfia, em comemoração ao centenário da independência dos Estados Unidos da América. Entretanto, silenciosamente ela apresenta a sobreposição do trabalho livre promovido pelos ingleses pelo escravismo (o segundo escravismo) aplicado pela engenharia americana na construção da coisa mais “moderna” encontrada no Império do Brasil a partir de 1860. 

As contradições são muitas e estruturais.

O uso de mão de obra escravizada nas obras de infra e superestrutura ferroviária entre Rio de Janeiro, Minas Ferais e São Paulo no século XIX foi promovida pelo abolicionista Cristiano Otoni. As locomotivas que os engenheiros dos EUA - que tinham base em Richmond, Virgícia, capital secessionista - introduziram na EFDPII a partir de 1862 foram fabricadas pela M. W. Baldwin & Co. (Baldwin Locomotive Works). 

A M. W. Baldwin & Co. estava à beira da falência em 1862 devido ao grande boicote aplicado pelos seus principais clientes até então, os escravistas do Grande Sul. Enquanto os secessionistas boicotavam a M. W. Baldwin, a Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II salvava a mesma companhia da bancarrota, pagando à vista, em dinheiro vivo, segundo o historiador John K. Brown.

Nos anos/décadas seguintes, o Brasil tornou-se o maior cliente externo da Baldwin Locomotive Works, sobretudo a Estrada de Ferro D. Pedro II, que passou a ser um departamento do estado Imperial em 28/09/1865. Um cliente tão especial que o maior fabricante de locomotivas do mundo já na década de 1870 selecionou um item destinado ao Império do Brasil para representá-lo no maior evento comemorativo dos Estados Unidos no século XIX.

Fotografia: Locomotiva “Príncipe do Grão Pará” exposta no Machinery Hall of 1876 , Philadelphia Exhibition. Baldwin Locomotive Works, class 8-30D 27, serial 3857, abril de 1876.



[1] CHALHOUB, Sidney. A Força da Escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, cap. 2.