sábado, 28 de julho de 2012

Como construir ruínas: o caso do carro RB-15


“Procura-se (...)enfatizar que a preservação de bens culturais, como começou a ser entendida principalmente a partir de finais do século XVIII, fundamenta-se em razões culturais num sentido lato – pelos aspectos estéticos, históricos, educacionais, memoriais e simbólicos – científicas – pelo conhecimento que essas obras trazem em vários campos do saber, tanto para as humanidades quanto para as ciências naturais – e éticas – que direitos temos de apagar os traços de gerações passadas e privar as gerações futuras da possibilidade de conhecimento de que esses bens são portadores –, voltando-se às variadas formas de expressão do fazer humano. Diferencia-se, pois, de ações de cunho prático que prevaleceram para qualquer obra legada por outras épocas até que a preservação se consolidasse como ato de cultura, quando se passou a dar uma atenção distinta a determinados tipos de bem nos quais se reconhecia um significado cultural. Em tempos recentes, as razões pragmáticas, muitas vezes disfarçadas de ações culturais, voltaram a prevalecer, mesmo em relação a obras reconhecidas legalmente como patrimônio cultural. Imperam razões que trazem benefícios materiais, esquecendo-se das raízes espirituais e humanísticas que motivam o campo. Ou seja, muitas das ações, hoje, são ditadas por questões utilitárias: pelo uso, pela especulação em busca de maiores lucros, para obter visibilidade na mídia, também com intuitos político-eleitorais, negando a origem, os objetivos e a própria essência da preservação como ato de cultura que tutela a memória e o conhecimento.”.
Beatriz Mugayar Kühl

O historiador Francisco Foot Hardman cunhou, em sua obra Trem-Fantasma, a expressão “construção de ruínas” ao se referir ao processo de construção da E. F. Madeira-Mamoré que simbolizava não só parte da ruina de traços naturais, com as extrações e desmatamentos, bem como a própria ferrovia que, em si, pela sua iminente inutilidade, se transformaria numa grande ruína no meio da selva.
Esse gancho me remete, de alguma forma, às últimas décadas da realidade brasileira no referente aos meios de transporte, com o desmantelamento de boa parte da rede ferroviária nacional e o sucateamento dos bens-de-capital e a desconsideração do valor documental e monumental do patrimônio da hoje extinta Rede Ferroviária Federal S.A. O PND (Plano Nacional de Desestatização), muito pouco explorado pela mídia quando se trata de levantar os danos por ele causados, devido a uma cultura privatista inconsequente e irresponsável, desconsiderou uma série de pontos referentes à manutenção das necessidades sociais, representadas pelos trens de passageiros de longo termo, e à proteção e preservação dos bens culturais representados pelo patrimônio ferroviário tangível (que traz prejuizos incalculáveis ao valor intangível desses bens).
Não trata-se aqui de um caso de desprezar a belíssima atuação do PRESERVE-MT (Programa de Preservação do Patrimônio Histórico do Ministério dos Transportes), programa esse fundamental para salvaguardar parte importante do nosso patrimônio. O caso é a danosa descontinuidade das políticas de preservação que trouxe consequências danosas até mesmo àquilo que foi contemplado com os projetos do PRESERVE ou, para ser mais explícito, dos bens museológicos de responsabilidade da Rede Ferroviária Federal S.A, como era o caso do “Centro de Preservação da Memória Ferroviária de Minas Gerais” ou, mais exatamente, o Complexo Ferroviário de São João del-Rei e todos os seus bens imóveis, móveis e integrados.
De posse do Processo DTC-SPHAN 1.185-T-85, tombamento federal do dito complexo, percebo que há uma falha (que creio seja muito comum nos processos do IPHAN) grotesca que poderia até mesmo cancelar o tombamento: não há inventário dos bens móveis. O que existe é uma listagem, pelo menos suficiente para saber o que existe (e existia) dentro do complexo ferroviário entre 1986 e 1989, e que deve (deveria) lá estar até o presente momento. Felizmente, há cidadãos que se interessam pelo tema e se identificam sobremaneira com tal patrimônio e, por curiosidade e pesquisas, conseguem recolher informações sobre esses bens.
O caso
Entre os veículos selecionados na década de 1980 para serem preservados, existem alguns que alcançaram o status de “raridade”, pela sua exclusividade devido a seus pares já não mais existirem. Isso dá a algumas peças um valor extraordinário, como exemplares que, em qualquer museu ferroviário considerado minimamente “sério”, estariam muito bem conservados. O carro RB-15 não era (é) o único que estava (está) ameaçado de ruína, mas era o de maior urgência de proteção devido ao maior aceleramento de sua degradação.
O caso RB-15, que poderá vir a ser o de outras peças encontradas no pátio ferroviário de São João del-Rei se ações emergenciais não forem executadas, é um símbolo do descaso, da indiferença e da má-fé dos responsáveis pela salvaguarda e proteção dos nossos bens culturais ferroviários.
Por mais que os bens ferroviários sejam fruto de um processo construtivo industrial, com o passar dos anos aqueles bens mais antigos, sobreviventes, tornam-se peças irrepetíveis, não mais redundantes. Essa irredundância, de certa maneira, os transforma em verdadeiras obras de arte, pela qualidade única que eles guardam em si pela representatividade histórica e monumental. O reconhecimento das obras de arte nos leva, pelo pensamento brandiano, a nos preocupar com as duas instâncias fundamentais de sua existência como bem monumental e que nos guiaria pela necessidade do restauro de tais bens. Pela unicidade e irrepetibilidade da obra, deveríamos considerar as palavras de Cesare Brandi:
“A restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas á sua transmissão para o futuro.” [1]
A “transmissão para o futuro”, pelo que podemos minimamente entender, é o papel dos museus, para que se permita que as gerações futuras tenham acesso ao conhecimento das atividades humanas de tempos variados da história. Quando o PRESERVE criou o museu ferroviário de São João del-Rei, e deu a ele o título de “Centro de Preservação da Memória Ferroviária de Minas Gerais”, imagino que a idéia não era deixar que as peças se arruinassem pela ação do tempo e descuidos humanos. O caráter de bem cultural gerava a necessidade de que as peças fossem minimamente conservadas e protegidas, não importa o estado em que estivessem. Se em bom estado, existe o termo conservação, se em mal estado e passível de recuperação, poderíamos lançar mão do restauro.
A ruína por intervenção natural é uma fatalidade, mas a ruína por omissão e irresponsabilidade, neste caso, é crime.
“Daquilo que precede resulta que, se é fácil estender à ruína de um monumento histórico o mesmo respeito que à ruína  de uma obra de arte, na medida em que esse respeito se voltará apenas para a conservação e a consolidação da matéria, não é, ao contrário, fácil definir quando, na obra de arte, cessa a obra de arte e aparece a ruína.” [2]

01-01-1982 (1)
1982. Foto: Acervo NEOM-ABPF/Coleção Hugo caramuru

08-01-2006
2006. Foto: Bruno Campos

21-03-2009 (10)
2009. Foto: Jonas Augusto

RB-15 10.06 PB
2011. Foto: Jonas Augusto

2009. Desenho: Welber Santos


FICHA TÉCNICA
Veículo: Carro Correio, Bagagem e Chefe do Trem (originalmente), Carro de Socorro (adaptado)
Origem: Rio de Janeiro
Fabricante: Companhia Edificadora
Constituição: Carro com estrutura e cobertura em madeira com truques de aço
Ano: 1913
Proprietário original: E. F. Oeste de Minas
Proprietário atual: União
Responsável pela fiscalização da conservação dos bens e tutela: IPHAN
Responsável pelo acervo em caráter precário: FCA S.A./Vale S.A. (ex-Companhia Vale do Rio Doce)
Estado de conservação em 1986 (início do tombamento federal): bom
Estado de conservação em 1996 (privatização da RFFSA e entrada da FCA S.A. em São João del-Rei): razoável
Estado de conservação em 2001 (assinatura do Termo de Permissão de Uso Precário pela FCA S.A./Vale S.A.): ruim
Estado de conservação atual: ruína

[1] BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Tradução de Beatriz Mugayar Kühl. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2003, p.30.
[2] Idem, p.67.

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