quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Os carros da Estrada de Ferro Oeste de Minas que sumiram

Dois carros típicos de fabricação Trajano de Medeiros. Aba curva floreada, extremidade da cobertura em arco abatido e portas descentralizadas.

Carro e vagão são termos sinônimos e não há nada de errado em chamar de “vagões” os veículos rebocados que o jargão operacional ferroviário denomina como “carros”.

No sistema britânico, os veículos rebocados – ou seja, aqueles que não possuem tração própria – seguem, basicamente, dois tipos principais: os wagons, que seriam aqueles utilizados para o transporte de mercadorias e materiais, e os carriages, que seriam aqueles utilizados para o transporte de pessoal e passageiros.

No sistema americano (ou estadunidense, como preferir), todos são cars. Há os passenger cars (carros de passageiros) e os freight cars (carros de carga).

No Brasil, convencionou-se chamar de “carros” aqueles veículos destinados ao transporte de passageiros e de pessoal da estrada e de “vagões” aqueles veículos destinados ao transporte de mercadorias e materiais (aqui uma simplificação generalista e ilustrativa, pois há termos específicos para funções variadas: gôndolas, tanques, pranchas, hoppers, gaiolas etc.).

Aqui, vamos focar nos carros; ou melhor, em dois carros específicos.

Os carros B-1 e B-11 da “bitolinha” de São João del-Rei.

As matrículas dos veículos rebocados provenientes da antiga Estrada de Ferro Oeste de Minas, que conhecemos até hoje, não são legadas dessa ferrovia formadora. Em 1938, o Decreto-Lei 132, de 23/09/1938, do Estado de MG, extinguiu a Estrada de Ferro Oeste de Minas e a Estrada de Ferro Sul de Minas (ex-Rede de Viação Sul-Mineira). Em 1939, foram publicadas as Instruções para o Serviço do Movimento (ISM) que, entre outras definições, estabeleceram os códigos de matrícula para material rodante.

Apesar de ter integrado a Rede Ferroviária Federal S.A., a malha em bitola de 762 mm não recebeu novas matrículas para seu material rodante nem mesmo com o estabelecimento do Sistema Integrado de Gestão Operacional (SIGO). Ao menos é o que percebemos nos arrolamentos de bens e ao observá-los no Complexo Ferroviário de São João del-Rei (CFSJDR) e no trajeto até Tiradentes, único trecho percorrido por eles desde 1984.

A matrícula de cada item de material rodante, apesar de servir como um nome para cada um, tem uma importância maior. Ela é uma identidade operacional e um registro de patrimônio. Não deve ser alterada sob nenhuma hipótese, a não ser em caso de se fazer um sólido registro documental para reconfigurar o bem em um momento histórico anterior.

Como dizíamos, as denominações e classificações mantidas pela “bitolinha” são as mesmas encontradas no documento RMV - Instruções para o Serviço de Movimento, de 1939:

Denominam-se carros os veículos destinados ao transporte de passageiros, condutores de trens, correio e bagagem e aos serviços da Administração, de socorro, alojamento do pessoal e restaurante. São classificados: Série A – Administração; Série B – 1ª classe para passageiros; Série C – 2ª classe para passageiros; Série D – Dormitório, Série E – Mixto (1ª e 2ª classes); Série F – Bagagem, correios e chefe do trem, correio e bagagem; Série G – Restaurante; Série H – Bagagem e animais; Série I – Salão; Série J – Transporte de cadáveres; Série R – Socorro e alojamento do pessoal.[1]

Entre os carros “sobreviventes” após 1984, e que formam o acervo do CFSJDR, temos:

Administração/Especial:

A-3: fabricado por Harlan & Hollingsworth, de Wilmington Delaware, EUA, originalmente Primeira Classe, reconstruído como Especial (Administração) nas oficinas de São João del-Rei.

A-5: fabricante ainda não determinado (carece de inspeção), potencialmente H&H, também.

A-6:  fabricante ainda não determinado (carece de inspeção), potencialmente H&H, também.

A-7: construído nas Oficinas de Lavras da Rede Mineira de Viação.

Primeira Classe:

B-1: fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro.

B-2: fabricado por Companhia Edificadora da Quinta do Caju, do Rio de Janeiro.

B-3: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas/Rede Mineira de Viação.

B-5: fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro.

B-8: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas/Rede Mineira de Viação.

B-11: fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro.

B-13: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas/Rede Mineira de Viação.

B-14: fabricado por Companhia Edificadora da Quinta do Caju, do Rio de Janeiro.

Segunda Classe:

C-1: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

C-8: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

C-9: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

C-10: fabricado por Companhia Edificadora da Quinta do Caju, do Rio de Janeiro.

C-13: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

C-16: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas (atualmente classificado como G-1 – adaptado como carro restaurante em 1984 para a Minissérie Rabo de Saia, inspirada no livro "Pensão Riso da Noite", de José Condé, permanecendo assim).

C-17: fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro.

Mistos:

E-4: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

E-7: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

Bagagem, Correios e Chefe do Trem:

F-7: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

F-8 (rematriculado ainda pela RFFSA como F-9[2]): construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas.

Socorro:

RA-6: fabricado por Lancaster Railway Carriage and Wagon Co., de Londres, Inglaterra.

RB-11: construído nas Oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas/Rede Mineira de Viação.

RB-15: fabricado por Companhia Edificadora da Quinta do Caju, do Rio de Janeiro. Demolido pela VLI-Multimodal S.A.

São poucas as imagens dos carros B-1 e B-11, mas são todas relativamente recentes. A mais antiga do meu arquivo referente ao B-1 é da década de 1950, fase RMV, e do B-11 é de 1979, portanto, já da fase RFFSA SR-2.

Carro B-1 em Barbacena, MG, c.1950. Foto: acervo de César reis.

Carro B-11 pronto para a viagem, 1979. Foto: Walter Serralheiro.

A segunda mais antiga do B-1 que temos, refere-se a uma excursão com estrangeiros de 1977, em que este aparece engatado ao carro administração A-3, como penúltimo do trem.

Carro B-1 seguido do carro A-3 em excursão de 1977 ao passar pela estação de Ibitutinga. Foto: Fotografia à venda no Ebay.

Outro registro do carro de Primeira Classe B-1 é de 1979, como calda de um trem misto parado na estação de Aureliano Mourão, em Bom Sucesso.

Carro B-1 na plataforma da estação triangular de Aureliano Mourão, 1979. Foto: Walter Serralheiro.

Em outra imagem, podemos ver o carro B-1 pintado com um tom diferente de vermelho, com tendência ao roxo, já nos últimos anos da década de 1980, portanto no período em pós conversão do trecho São João del-Rei-Tiradentes em museu, com trens chamados de "turísticos". Para variar, o B-1 seguia na calda da composição.

Carro B-1 em Tiradentes, c.1990. Notar a via permanente refeita pelo PRESERVE-MT, recuperando o conceito de VP com lastro de cascalho do Rio das Mortes (seixo rolado) estabelecido por volta de 1910. Foto: Christopher Beyer.

No livro de Paul Waters, "West of Minas Narrow Gauge", encontramos imagem do B-1 em 1999, de autoria de C. Schoff, fruto da visita que esse viajante e entusiasta realizou em São João del-Rei, ocasião em que testemunhamos essa visita. 

Carro B-1 como primeiro carro do trem na estação de São João del-Rei, 1999. Foto: C. Schoff (como publicada no livro "West of Minas Narrow Gauge", de Paul Waters).

Em 2000, o carro B-1 ainda era visto na composição do trem dito "turístico". Com a pintura descascada, mas em condições razoáveis de estrutura. Vale notar que as caixas de acumuladores (baterias) J. Stone já haviam sido removidas. 

Carro B-1 em São João del-Rei. Foto: acervo de Jonas Martins.

Já o carro B-11, retorna ao nosso arquivo já no ano de 1983, também registrado pelo viajante inglês Paul Waters e com imagem publicada em seu livro sobre a Estrada de Ferro Oeste de Minas.

Carro B-11 na plataforma da estação de São João del-Rei, 1983. Foto: Paul Waters.

O carro B-11 ainda fazia parte das composições entre São João del-Rei e Tiradentes na ocasião em que a FCA assumiu a operação do trecho. Nas imagens a seguir, realizadas no mesmo dia em fotografias de Hugo Azevedo Caramuru, vemos o B-11 como parte do trem.

Carro B-11 na plataforma da estação de São João del-Rei, 1998. Foto: Hugo Caramuru. Notar o colete da Ferrovia Centro-Atlântica utilizado pelo guarda.

Carro B-11 na plataforma da estação de São João del-Rei, 1998. Foto: Hugo Caramuru.

Carro B-11 na plataforma da estação de Tiradentes, 1998. Foto: Hugo Caramuru.

Em 2004, o carro B-11 encontrava-se em pesado processo de modificação na carpintaria de São João del-Rei. Trabalho realizado por uma empresa chamada "Minas Móveis", responsável pela remoção do conjunto sanitário (banheiros, torneiras, pias e outros acessórios de bronze e cobre).

Carro B-11 na carpintaria do CFSJDR, 2004. Foto: Welber Santos.

No Laudo de Vistoria nº 10/16-EAI IPHAN/MG, de 27/10/2016, o então analista técnico do Escritório Técnico de Tiradentes, do IPHAN/MG, Olinto Rodrigues, confunde o carro RB-11 com o carro B-11. Em comum, os dois possuem apenas o 11 da série de cada matrícula. O carro RB-11 é um antigo carro dormitório (série D) que foi convertido de dormitório de viagens (D) para dormitório do serviço de Socorro (R), por isso o “RB”. Esse carro ainda traz as características originais da planta de carro dormitório e, externamente, é um típico carro construído nas oficinas de Lavras da Estrada de Ferro Oeste de Minas/Rede Mineira de Viação (caixa idêntica aos carros B-3, B-8 e B-13). Inclusive, os dois carros (B-11 e RB-11) coexistiam até 2004.

Carro RB-11 estocado na carpintaria do CFSJDR, 2016. Notar as colunas de madeira da plataforma (varanda), típicos dos carros mais novos construídos ou reconstruídos nas oficinas de Lavras. Foto: IPHAN.

O carro B-1 e o carro B-11 carregam todas as características dos carros fabricados pela Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro: janelas sem bandeiras superiores, para-choques mais estreitos e de ângulo reto, portas descentralizadas (deslocadas à esquerda), corrimãos mais estreitos do que os dos carros de outras procedências.

Outra aparição mais recente do carro B-11, pouco anterior a 2004, foi sua disposição como enfeite de natal junto da locomotiva nº 21, na entrada da rotunda. Temos até mesmo um registro da Revista Ferroviária.

Outra aparição mais recente do carro B-11, pouco anterior a 2004, foi sua disposição como enfeite de natal junto da locomotiva nº 21, na entrada da rotunda. Temos até mesmo um registro da Revista Ferroviária.

Carro B-11 na carpintaria do CFSJDR, 2004. Foto: Welber Santos.

O mesmo Laudo de Vistoria nº 10/16-EAI IPHAN/MG, de 27/10/2016, traz mais uma confusão, esta sobre o carro B-1, também fabricado por Trajano de Medeiros & Cª. Nesse caso, o analista técnico Olinto Rodrigues afirma:

Com relação ao carro B-l, a partir dos documentos referenciados na Resolução n°01. a qual esse laudo responde, é citado que o bem aparece em listagem do termo de transferência n°009/2009. Em consulta a essa lista foi identificado que o bem cuja inscrição é B-l trata-se na verdade de um vagão tanque, e não de um carro de passageiros de 1ª classe (Foto 6). Tal informação entra em conformidade com o inventário desenvolvido pela empresa Grillo e Wernerck Consultoria e Projetos. (grifo nosso)

Vagão tanque YB-1 que, segundo Olinto Rodrigues e Grillo & Werneck, é o verdadeiro carro de Primeira Classe B-1, 2016. Foto: IPHAN.

Ou seja, tanto os técnicos do IPHAN quanto a empresa que venceu concorrência para elaborar projeto de restauração geral do CFSJDR não possuem profissionais com conhecimento sobre o objeto em análise. A vistoria, portanto realizada com a conferência in loco, com acesso aos bens, não permitiu contar a totalidade dos veículos ou elaborar um estudo para diferenciar carros de vagões, classes e categorias de material rodante em suas concepções mais básicas.

Não temos maiores informações e nos falta acesso aos bens, mas é possível desconfiar que o carro B-11 ou recebeu nova matrícula ou foi demolido. No entanto, nem FCA/VLI, que faz uso precário do sítio e opera o trem, nem IPHAN, que é cessionário desses bens, sabem qual foi seu destino

Ilustração (provisória) comparativa entre um carro Trajano de Medeiros & Cª (B-1, B-5, B-11 e C-17) e um carro construído nas oficinas de Lavras E.F.O.M./R.M.V. com colunas de madeira nas plataformas (B-3, B-8, B-13 e RB-11). Para um leigo, podem até parecer iguais, mas para um olho mais atento, as diferenças se tornam óbvias. Desenho (provisório): Welber Santos.

Para quem se interessa, o complemento dos ISM-RMV sobre as categorias de material rodante:
§ 3º Denominam-se vagões os veículos fechados destinados ao transporte de mercadorias. São classificados: Série S – Frigoríficos (para leite etc.); Série T – Inflamáveis; Série U – Grãos (trigo etc.); Série V – Mercadorias em geral e de armazém; Série W – Automóveis etc; Série X – Coletores./ § 4º - Denominam-se gaiolas os veículos destinados ao transporte de animais. São classificados: Serie K – Bovinos; Série L – (com dois andares) Suínos./§ 5º - Denominam-se gôndolas os veículos abertos com bordas e destinados ao transporte de mercadorias de pátio, como areia, pedra, carvão, minério, tijolos etc. São classificados: Serie M – Com bordas altas; Série N – Metálicas, com bordas; Série O – Com grades altas nas cabeceiras; Série P – Com bordas baixas./§ 6º - Denominam-se pranchas os veículos abertos, contendo fueiros, destinados ao transporte de mercadorias de pátio, como lenha, madeira, trilhos etc. São classificados na série Q./§ 7º - Os vagões, gaiolas, gôndolas e pranchas além das letras indicativas das séries, têm, imediatamente juntas a estas, outras que indicam a lotação respectiva, a saber: A - 8.000 kg, B - 12.000, C - 18.000, D - 24.000 e E - 30.000 kg. Fonte: REDE MINEIRA DE VIAÇÃO. Instruções para o Serviço de Movimento (ISM). Belo Horizonte: Pap. e Typ. Brasil, 1939, pp. 9-10.
N. do A. 1: a série Y, referente aos tanques para transporte de óleo BPF (Baixo Ponto de Fluidez), foi criada posteriormente ao ISM de 1939, já que a adaptação das locomotivas para a queima desse tipo de óleo em substituição à lenha e ao carvão ocorreu a partir da década de 1950.
Nessa série encontra-se o tanque YB-1, confundido com o carro B-1 pelo pessoal do IPHAN e do escritório de arquitetura e engenharia Grillo & Werneck.

N. do A. 2: os carros de classe, de bagagens, correios e chefe do trem e dormitórios que foram convertidos ao serviço do Socorro recebem matrícula estruturada ao modo de vagões, com duas letras: como pode ser notado nos parágrafos citados dos ISM sobre classificação de carros e vagões, a primeira letra é o R ("Série R – Socorro e alojamento do pessoal") e a segunda refere-se à lotação máxima ("A - 8.000 kg, B - 12.000, C - 18.000, D - 24.000 e E - 30.000 kg").

[1] REDE MINEIRA DE VIAÇÃO. Instruções para o Serviço de Movimento (ISM). Belo Horizonte: Pap. e Typ. Brasil, 1939, pp. 9-10.

[2] O carro F-9 original foi um fabricado por Trajano de Medeiros & Cª, do Rio de Janeiro.


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