quarta-feira, 10 de maio de 2023

A simbologia da fotografia de uma locomotiva da E. F. D. Pedro II na Philadelphia Exhibition de 1876

Tecnologia, “segundo escravismo” e americanização ferroviária no Brasil

Em seu livro “A Força da Escravidão”, o historiador Sidney Chalhoub traduziu o conceito “second slavery” - elaborado por Dale Tomich - como “segundo escravismo”. Na minha tese de doutorado, utilizei “segunda escravidão”, conforme acabou sendo definido pela historiografia posteriormente. Independentemente da tradução, o sentido é o mesmo: “second  slavery” refere-se a uma interpretação do fenômeno iniciado no século XVIII e fortemente estabelecido no XIX referente ao novo fôlego tomado pela instituição escravista nas Américas.

O recrusdescimento da escravidão moderna, ou seja, o revigoramento da prática de manter seres humanos como propriedade no mundo pós grandes revoluções teve completa ligação com a expansão do capitalismo industrial.

No contexto do segundo escravismo encontramos a manutenção do tráfico transatlântico depois da Lei de 7 de novembro de 1831, que estabelecia como “livres todos os escravos vindos de fora do Império, e imp[unha] penas aos importadores dos mesmos escravos” e a utilização dessa população nos meios de produção de primários (monoculturas) para o mercado externo, em especial o algodão, o açúcar e o café.

Desde a Lei de 1831, a escravidão brasileira era uma instituição “forte” - como saliente o título do Sidney Chalhoub - mas oficialmente envergonhada. Explico: 

Quando iniciei minha pesquisa para escrever a tese de doutorado, comecei, como é de praxe, do começo; ou seja, investigando a documentação de estado. Meu objeto era a construção de estradas de ferro no território do Império do Brasil e sua relação com a expansão global desse tipo de estrutura de transporte. Como uma invenção reconhecidamente britânica, é de comum conhecimento que a construção de ferrovias fora da Grã-Bretanha teve forte participação de agentes britânicos e o fornecimento de equipamento pela indústria britânica. Do mesmo modo, muitas ferrovias construídas fora da Grã-Bretanha foram construídas e operadas por companhias com sede em Londres.

Foi assim que a Companhia Estrada de Ferro Dom Pedro II iniciou sua trajetória, como uma concessão contratada com o escocês Thomas Cochrane - o mesmo médico que apresentou ao Brasil a homeopatia (cof cof cof...) - em 1840. Também, a Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis foi fundada por Irineu Evangelista de Souza com financiamento do Banco Carruthers, de Castro & Co., sediado em Manchester, e aquidição de equipamento na mesma cidade inglesa.

Ao pesquisar os relatórios ministeriais referentes às obras públicas (Ministério do Império e, a partir de 1860, Ministério da Agricultura), os relatórios da Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II (1856-1865) e da Estrada de Ferro D. Pedro II como departamento do estado imperial (1866-1889), os jornais de 1835 a 1889 e a autobiografia de Cristiano Otoni (presidente da CEFDPII), o investigador quase acredita que a principal estrada de ferro do Brasil era um oasis antiescravista no Império.

De fato, os empreiteiros e engenheiros contratados para construir a primeira seção da EFDPII, os ingleses Edward Price, Charles Edward Austin e Samuel Bayliss, colocaram uma cláusula que impedia o uso de mão de obra escrava no contrato. Exigiam e, tudo indica, empregaram apenas jornaleiros livres.

Cristiano Otoni, conhecido republicano e famoso abolicionista, como presidente da companhia, era inimigo público declarado dos ingleses. A justificativa do mineiro era a de que esses ingleses impuseram cláusulas ultra danosas aos cofres da companhia e que, para a segunda seção e seguintes os contratos deveriam ser feitos com americanos.

Para contratar os americanos, Otoni citava sempre a capacidade técnica apropriada para vencer nossas serras com custos reduzidos, como esses americanos faziam nas Alleghenies (parte dos Montes Apalaches). Ele manteve esse argumento tanto nos relatórios da CEFDPII (1856-1865) quanto em sua autobiografia, escrita após 1889.

O que os documentos oficiais omitiam e os historiadores brasileiros até agora não discutiam, a historiografia internacional veio informar (diria até, denunciar): o que Cristiano Otoni, os ministérios do Império e os jornais do século XIX tentaram apagar para a posteridade é o fato de que a opção pelos engenheiros dos Estados Unidos era a aplicação de mão de obra escrava para construir a Estrada de Ferro D. Pedro II.

No início dos anos 1850, quando nova conjuntura política interna e externa levaria à interrupção definitiva do negócio dos tumbeiros, quiçá a metade da população escrava em idade produtiva existente no país fosse constituída por africanos ilegalmente escravizados e seus descendentes; essa taxa de ilegalidade da escravidão era decerto muito mais alta nas fazendas de café do Vale do Paraíba, para onde afluíram em massa os africanos chegados após a lei de 1831.[1]

A fotografia aqui apresentada consta apenas nos arquivos da Exibição de 1876 de Filadélfia, em comemoração ao centenário da independência dos Estados Unidos da América. Entretanto, silenciosamente ela apresenta a sobreposição do trabalho livre promovido pelos ingleses pelo escravismo (o segundo escravismo) aplicado pela engenharia americana na construção da coisa mais “moderna” encontrada no Império do Brasil a partir de 1860. 

As contradições são muitas e estruturais.

O uso de mão de obra escravizada nas obras de infra e superestrutura ferroviária entre Rio de Janeiro, Minas Ferais e São Paulo no século XIX foi promovida pelo abolicionista Cristiano Otoni. As locomotivas que os engenheiros dos EUA - que tinham base em Richmond, Virgícia, capital secessionista - introduziram na EFDPII a partir de 1862 foram fabricadas pela M. W. Baldwin & Co. (Baldwin Locomotive Works). 

A M. W. Baldwin & Co. estava à beira da falência em 1862 devido ao grande boicote aplicado pelos seus principais clientes até então, os escravistas do Grande Sul. Enquanto os secessionistas boicotavam a M. W. Baldwin, a Companhia Estrada de Ferro D. Pedro II salvava a mesma companhia da bancarrota, pagando à vista, em dinheiro vivo, segundo o historiador John K. Brown.

Nos anos/décadas seguintes, o Brasil tornou-se o maior cliente externo da Baldwin Locomotive Works, sobretudo a Estrada de Ferro D. Pedro II, que passou a ser um departamento do estado Imperial em 28/09/1865. Um cliente tão especial que o maior fabricante de locomotivas do mundo já na década de 1870 selecionou um item destinado ao Império do Brasil para representá-lo no maior evento comemorativo dos Estados Unidos no século XIX.

Fotografia: Locomotiva “Príncipe do Grão Pará” exposta no Machinery Hall of 1876 , Philadelphia Exhibition. Baldwin Locomotive Works, class 8-30D 27, serial 3857, abril de 1876.



[1] CHALHOUB, Sidney. A Força da Escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, cap. 2.

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