Apesar do processo de dieselização ocorrido fortemente nas ferrovias brasileiras, sobretudo nas estradas de ferro administradas pela União desde a década de 1940[1], concomitantemente à baixa (sucateamento) das antigas – e mesmo novas – locomotivas a vapor, muitas dessas últimas sobreviveram. Muitas locomotivas a vapor podem ser vistas como monumentos em praças por todo o país, como parte de acervos de museus e, para a alegria de muitos e desespero de outros, é possível testemunhar o funcionamento de algumas.
Dentre
essas sobreviventes, dois grupos se destacam e ambos são herança da Estrada de
Ferro Oeste de Minas. Nos referimos às Ten-wheeler de bitola de 762 mm (2
pés e ½) e de bitola métrica (3 pés, 3 polegadas e 3/8). O primeiro grupo
encontra-se todo no espaço denominado Centro de Preservação da Memória Ferroviária
de Minas Gerais, em São João del-Rei;
o segundo, além e haver pelo menos duas unidades no mesmo citado sítio da
cidade mineira, será visto espalhado em pelo menos quatro estados da federação,
funcionando ou não.
Aspecto da ficha de encomenda de uma dessas Ten-wheeler da Estrada de Ferro Oeste de Minas na documentação do fabricante Baldwin Locomotive Works. Volume 44, p. 49.
Afinal,
o que significa Ten-wheeler?
Esse
nome, em inglês, traduzido literalmente quer dizer nada mais, nada menos que
“de dez rodas”. O epíteto foi dado, ainda no século XIX, às primeiras
locomotivas com o total de dez rodas derivadas do tipo mais comum americano (American
Standard). Enquanto as American Standard possuíam um truque de guia
com dois eixos/quatro rodas, inventado por John B. Jervis em 1832[2], seguidos de dois
eixos/quatro rodas motrizes conjugadas; as Ten-wheeler se configuravam
da mesma forma, exceto pelo eixo/duas rodas a mais na conjugação motriz. Dessa
forma, na classificação ou notação Whyte (de Frederick Methvan Whyte) as
American Standard são as 4-4-0 e as Ten-Wheeler são as 4-6-0 (referência
que usaremos a partir daqui).
ooOO – American
Standard
ooOOO – Ten-Wheeler
Veremos
o quadro com todas essas sobreviventes para, depois, descrevê-las,
individualmente.
Quadro – locomotivas do tipo Ten-wheeler
(4-6-0)
EFOM |
EFOM |
RMV |
Ano-mês |
Classe |
Bitola |
Serial |
Motor[3] |
39 |
107 |
37 |
1911-out |
10-18 D 9 |
762 mm |
37082 |
12x18-38 |
40 |
108 |
38 |
1911-out |
10-18 D
10 |
762 mm |
37083 |
12x18-38 |
42 |
110 |
40 |
1912-jul |
10-18 D 12 |
762 mm |
38010 |
12x18-38 |
43 |
111 |
41 |
1912-jul |
10-18 D
13 |
762 mm |
38011 |
12x18-38 |
44 |
112 |
42 |
1912-jul |
10-18 D 14 |
762 mm |
38050 |
12x18-38 |
45 |
113 |
43 |
1912-jul |
10-18 D
15 |
762 mm |
38051 |
12x18-38 |
19 |
100 |
205 |
1910-jan |
10-24 D 64 |
1000 mm |
34216 |
15x20-43 |
20 |
101 |
206 |
1910-jan |
10-24 D
65 |
1000 mm |
34217 |
15x20-43 |
28 |
109 |
210 |
1911-jan |
10-24 D 75 |
1000 mm |
35818 |
15x20-43 |
31 |
112 |
213 |
1911-set |
10-24 D
88 |
1000 mm |
36978 |
15x20-43 |
33 |
114 |
215 |
1912-abr |
10-24 D 93 |
1000 mm |
37710 |
15x20-43 |
38 |
119 |
220 |
1912-jul |
10-24 D
98 |
1000 mm |
38015 |
15x20-43 |
39 |
120 |
221 |
1914-abr |
10-24 D 114 |
1000 mm |
41302 |
15x20-43 |
43 |
124 |
225 |
1918 |
EFOM
460 |
1000 mm |
(?) |
15x20-43 |
45 |
126 |
227 |
1919-ago |
10-24 D 125 |
1000 mm |
52260 |
15x20-43 |
46 |
127 |
232 |
1920-abr |
10-24 D
129 |
1000 mm |
53159 |
15x20-43 |
128 |
233 |
1920-nov |
10-26 D 337 |
1000 mm |
54055 |
16x20-43 |
|
130 |
235 |
1920-nov |
10-26 D
339 |
1000 mm |
54057 |
16x20-43 |
|
131 |
236 |
1920-nov |
10-26 D 340 |
1000 mm |
54058 |
16x20-43 |
|
134 |
239 |
1920-nov |
10-26 D
343 |
1000 mm |
54061 |
16x20-43 |
Fontes: CARAMURU,
Hugo IN PIMENTA, D. J., ELEUTÉRIO, A. B., CARAMURU, Hugo. As Ferrovias em Minas
Gerais. Belo Horizonte: SESC/MG, 2003, pp. 96-107; Tabela paralela de Jonas
Martins de Carvalho e Documentação da Baldwin Locomotive Works da SMU: Degolyer
Library[4].
De
acordo com o quadro acima, das 52 locomotivas de rodagem 4-6-0 da Estrada de
Ferro Oeste de Minas, 20 sobreviveram, uma taxa de 38,46% da frota histórica de
máquinas dessa rodagem. Entre as 20, 6 são de bitola de 762 mm, classe 10-18D,
e 14 são de bitola de 1.000 mm (métrica); 10 de classe 10-24 ou equivalente e 4
de classe 10-36D. A equivalente às 10-24D consiste da locomotiva construída nas
oficinas de Divinópolis em 1918, cuja matrícula original era 43, renumerada
ainda na EFOM como 124 e na RMV como 225. Para entender a lógica das classes
BLW, basta clicar aqui.
Fotografia de fábrica da locomotiva Ten-wheeler EFOM 49/100; RMV/VFCO 33, de bitola de 762 mm, classe BLW 10-18D 21. Fonte: RRMOP – Library & Archives.
Entre
as 4-6-0 de bitola de 762 mm, duas praticamente nunca saíram de serviço: as
10-18D 13 e 10-18D 14, mais conhecidas na comunidade de São João del-Rei e
Tiradentes como “quarenta e uma” e “quarenta e duas”, portanto as RMV/VFCO/SR-2[5] 41 e 42. As outras, desde
que o PRESERVE-MT converteu o complexo ferroviário em Centro de Preservação da Memória Ferroviária
de Minas Gerais, em São João del-Rei,
foram desativadas para contar entre os bens em exposição permanente na rotunda.
Das
14 locomotivas originais, 7 eram de longerão[6] interno (inside-frame)
e 7 de longerão externo (outside-frame). Todas as sobreviventes se
enquadram no segundo grupo. As de longerão interno, segundo ferroviários que as
conheceram, eram menos equilibradas sobre a linha, devido à bitola reduzida. Infelizmente,
não temos aqui condições técnicas de avaliar a verossimilhança do alegado.
Fotografia de fábrica da locomotiva Ten-wheeler EFOM 39/120; RMV 221, de bitola métrica, classe BLW 10-24D 114. Fonte: RRMOP – Library & Archives.
Já
as de bitola métrica são casos mais abertos. Devido a uma dieselização
mais lenta da Rede Mineira de Viação e suas derivadas dentro da Rede
Ferroviária Federal S. A., as locomotivas a vapor mais versáteis e econômicas
permaneceram nos serviços de manobra dos complexos ferroviários referentes,
tais como Angra dos Reis, Barra Mansa, Ribeirão Vermelho, Três Corações,
Divinópolis e outros pontos.
Fotografia de fábrica da locomotiva Ten-wheeler EFOM 136; RMV/VFCO/SR-2 241, de bitola métrica, classe BLW 10-26D 345[7], com o cartão de especificações básicas. Fonte: RRMOP – Library & Archives.
Apesar
de algumas terem sido movidas para figurar em praças, pelo menos cinco chegaram
a ser recuperadas à condição operacional. Essas são as 10-24D 64, 10-24D 75,
10-24D 93, 10-24D 129 e 10-26D 339; respectivamente RMV/VFCO/SR-2 205, 210,
215, 232 e 235. As 205, 210 e 215 encontram-se em Campinas, SP, na regional
sede da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária. A 215 é a principal
peça da regional e foi batizada em homenagem ao fundador da entidade, Patrick
Dollinger. A 205 chegou a ser cedida para fazer trens de passeio em Pouso
Alegre, MG, onde acabou sendo abandonada. Hoje, de volta a Campinas,
encontra-se em condições mais honrosas de preservação. A 210 encontra-se à
espera de reparos mais sérios, após servir por anos os trens entre Campinas e
Jaguariúna. A 232, após anos em desvio de Carlos Gomes, Campinas, SP, foi
recuperada para servir em Santa Catarina, pela Regional Sul da ABPF. Essa
máquina opera o trem de Apiúna, em linha reconstruída como esforço memorial
sobre trecho erradicado da E. F. Santa Catarina.
10-24D 93 (EFOM 33/114; RMV/VFCO/SR-2 215) em Carlos Gomes, distrito de Campinas, SP. Fotografia de Welber Santos.
As 10-24D colocadas em praças são as 206 (EFOM 20/101; RMV/VFCO/SR-2 206), em Conservatória, distrito de Valença, RJ; 213 (EFOM 32/113; RMV/VFCO/SR-2 213), na estação de Três Corações, MG, em frente ao terminal rodoviário; 223 (EFOM 41/122; RMV/VFCO/SR-2 223), em Piquete, SP; 227 (EFOM 45/126; RMV/VFCO/SR-2 227), em Itaúna, MG. São, respectivamente, as classes BLW 10-24D 65, 88 e 125. Soma-se a essas a 225[8] (EFOM 43/124; RMV/VFCO/SR-2 225), em Maria da Fé, MG, construída nas oficinas da E. F. Oeste de Minas em 1919 com mesmas especificações das Baldwin.
A 10-24D 98 (EFOM 38/119; RMV/VFCO/SR-2 220) sofreu um corte longitudinal, inspirado na Pacific 35029 classe Merchant Navy da British Railways (Southern Railway Region) exposta no National Railway Museum, em York, Reino Unido. Tal corte teve como finalidade a exposição da locomotiva dentro da rotunda de São João del-Rei de modo a utilizá-la como demonstrativo do funcionamento do conjunto caldeira-motor.
10-24D 98 (EFOM 38/119; RMV/VFCO/SR-2 220) aberta como demonstrativo do funcionamento de uma locomotiva a vapor, seguindo a ideia encontrada no National Railway Museum de York, Inglaterra. Foto de Welber Santos.
Um pouco mais robustas do que as anteriores, apresentando cilindros de maior diâmetro, as RMV/VFCO/SR-2 233, 235, 236 e 239 são as classes BLW 10-26D 337, 339, 340 e 343, respectivamente. Originalmente um grupo de 10 locomotivas (BLW 10-26D de 337 a 346/EFOM de 128 a 137), na Rede Mineira essas receberam as matrículas que iam de 233 a 242. Existe uma quinta quase sobrevivente, que ainda existe em vestígios em trecho de Mata Atlântica de Angra dos Reis. Após um acidente causado por queda de barreira em local de difícil acesso ainda na década de 1950[9], a 238 encontra-se em “estado de decomposição” na Serra de Angra.
Transferência da Ten-wheeler EFOM 128; RMV/VFCO/SR-2 233 das oficinas para a praça da estação de lavras, MG, em 1997. Fotografia de Renato Libeck.
A
233, em 1997, quando encontrava-se completa e em excelentes condições para
possível operação, foi removida das oficinas de Lavras, MG, para figurar como monumento
na praça daquela estação. Nos anos seguintes, esse bem foi, em linguagem
popular, “depenado”. Todas as peças removíveis foram roubadas.
Melhor
destino encontrou a 235, ao ser transferida para Piratuba, SC, onde é a estrela
do “Trem das Termas”, operado pela Regional Sul da ABPF.
Vídeo postado no Youtube pelo canal OFICINA-JUST FOR FUN com o título "Turismo na Ferrovia do Contestado - Trem das Termas em Piratuba/SC".
A
236 sofreu um destino parecido com a 233. No entanto, houve o cuidado dos
responsáveis por retirar e guardar todas as peças removíveis antes de coloca-la
como monumento na estação de Jaguariúna, SP. Em uma estação da Companhia Mogiana de Estradas de
Ferro, faria mais sentido um bem sobrevivente desta para tal papel, considerando
que esses bens existem. Porém, nada impede que uma troca possa ser feita no fuituro.
Locomotiva classe BLW 10-26D 343, EFOM 134; RMV/VFCO/SR-2 239, nas oficinas de São João del-Rei após ser transportada sobre uma prancha em um dos últimos trens a percorrer o trecho Aureliano Mourão-São João del-Rei, em 1983.
A
239 é uma das peças do acervo do já citado Centro de Preservação da Memória Ferroviária
de Minas Gerais, em São João del-Rei.
Tendo servido como caldeira fixa em Barra Mansa em seus últimos dias de serviço
já na fase VFCO, a locomotiva encontra-se completa, exceto pelos condutores de
vapor internos à caixa de fumaça, removidos justamente devido à função de
caldeira fixa.
[1] Eduardo Coelho e João Bosco Setti sugerem
que a primeira locomotiva com motor diesel (de transmissão mecânica) pode ter
sido uma fornecida pela MAN, da Alemanha, à Companhia Ferroviária dos Botelhos,
em São Paulo. Sistematicamente, porém, os mesmos autores apontam a Viação
Férrea Federal Leste Brasileiro como o estopim de optar por locomotivas
diesel-elétricas como alternativas às ainda importantes locomotivas a vapor, em
1938. COELHO, Eduardo J. J.; SETTI, João Bosco. A Era Diesel na EFCB.
Rio de Janeiro: AENFER, 1993, pp. 23-4.
[2] Um dos inventos fundamentais para a
americanização das locomotivas teria sido um de 1832, obra de John Bloomfield
Jervis (1795-1885), que, por não ter sido patenteado, foi imediatamente adotado
pelos outros construtores americanos, entre eles o próprio Baldwin. Essa peça
era denominada swivelling truck, leading truck, ou, como foi
nomeada no Brasil, truck [de] guia, e tinha a função de melhorar a
performance das locomotivas nas linhas construídas em regiões montanhosas e/ou
com excesso de curvas de raios apertados.
Jervis era engenheiro da Mohawk and Hudson Rail Road e seu
projeto, nomeado Experiment, foi desenvolvido em 1831, sendo seu
resultado, a locomotiva nomeada como Brother Jonathan, entregue àquela
companhia em 1832 pela West Point Foundry Association. SANTOS, Welber
Luiz dos. American Way of Rails: tecnologia e a construção da Estrada de
Ferro D. Pedro II em perspectiva atlântica e no contexto da segunda escravidão
(1835-1889). Mariana, MG.
2021. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade Federal de Ouro Preto, p. 92.
[3] Motor: diâmetro x curso dos cilindros em
polegadas – diâmetro das rodas motrizes.
[4] Railroads
- Photographs, Manuscripts, and Imprints: Baldwin Locomotive Works engine
specifications, 1869-1938. Disponível em: <
https://digitalcollections.smu.edu/digital/collection/rwy/id/32 >. Acessado a
partir de: 30/07/2013; Railroads - Photographs, Manuscripts, and Imprints:
Baldwin Locomotive Works, Index of Companies, Construction Numbers from 30000
to 34999, January 1907 to July 1910; Railroads - Photographs,
Manuscripts, and Imprints: Baldwin Locomotive Works, Index of Companies,
Construction Numbers from 35000 to 39999, July 1910 to July 1913; Railroads
- Photographs, Manuscripts, and Imprints: Baldwin Locomotive Works, Index of
Companies, Construction Numbers from 40000 to 44999, July 1913 to January 1917;
Railroads - Photographs, Manuscripts, and Imprints: Baldwin Locomotive
Works, Index of Companies, Construction Numbers from 45000 to 49999, January
1917 to September 1918; Railroads - Photographs, Manuscripts, and
Imprints: Baldwin Locomotive Works, Index of Companies, Construction Numbers
from 50000 to 54999, September 1918 to August 1921. Disponíveis em: <https://digitalcollections.smu.edu/digital/collection/rwy/search/searchterm/indexes!Baldwin%20Locomotive%20Works%20records/field/formge!part/mode/exact!exact/conn/and!and/order/upload/ad/asc>.
Acessados em: 10/05/2020.
[5] As matrículas que permaneceram nessas
locomotivas, que se tornaram suas identidades permanentes, são fruto da
renumeração que a Rede Mineira de Viação aplicou em 1938 sobre seu patrimônio
rodante, na ocasião de sua reorganização. Essa reorganização extinguia as
antigas ferrovias sob sua administração, fundindo-as em um sistema unificado. Para
maiores detalhes, basta entrar aqui.
Essas matrículas, referentes às locomotivas a vapor da RMV, permaneceram inalteradas
nas fases administrativas posteriores, pelas quais essas ferrovias passaram:
Rede Mineira de Viação devolvida à União (RMV [federal] 1953-1957); Rede
Mineira de Viação como ferrovia da Rede Ferroviária Federal S. A. (RFFSA-RMV
1957-1965); Viação Férrea Centro-Oeste (RFFSA-VFCO 1965-1976); Superintendência
Regional 2 (RFFSA SR-2 1978-1996).
[6] Se fosse um veiculo automotor, diríamos que
o longerão é um chassi.
[7] É possível verificar na cópia em alta
resolução da fotografia que o fabricante pintou a locomotiva como 128; porém, a
placa frontal traz o nº 136 e a placa serial traz o valor 54063, pertencentes à
classe BLW 10-26D 345.
[8] Esta locomotiva foi construída nas oficinas
da Estrada de Ferro Oeste de Minas, em 1919, seguindo as especificações das
10-24D encomendadas à Baldwin Locomotive Works. Em breve escreverei um
post sobre as locomotivas que a EFOM construiu. Seu estado de abandono e
precariedade refletem a ignorância geral sobre o patrimônio industrial
brasileiro.
[9] Agradeço a Tharles Alves pelo relato
coletado e publicado sobre o evento no grupo Túnel do Tempo Angra, na plataforma digital Facebook.
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