segunda-feira, 13 de junho de 2022

A contínua ilegalidade da VLI/FCA como ocupante do Complexo Ferroviário de São João del-Rei

Os frutos podres que ainda colhemos da privatização da malha ferroviária de 1996: o caso do Complexo Ferroviário de São João del-Rei

Página inicial de KIRCHNER, John A. “Where slide valves, link ‘n pin, and 2’6” survive - Untouched by time: Brazil’s tiny Baldwins”. in: Trains: The Magazine of Railroading, Novembro, 1981.

O modelo de concessão ferroviária estabelecido pelo Plano Nacional de Desestatização do governo Collor, de 1992, e realizado pelos leilões das malhas da União – antes administradas pela Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) – foram um desastre sob vários aspectos. O aspecto que aqui nos interessa é o destino daquilo que ficou de fora das concessões e arrendamentos subjacentes.
As partes excluídas do processo e não contempladas em alternativas para sua salvaguarda e operação foram basicamente duas: 1. O transporte de passageiros intermunicipal e interestadual de longa distância operado pela RFFSA; 2. Os museus e centros de memória sob administração das superintendências regionais da mesma RFFSA e da CBTU. É na segunda parte que se inclui o Complexo Ferroviário de São João del-Rei – nomeado como “Centro de Preservação da Memória Ferroviária de Minas Gerais” pelo Programa de Preservação do Patrimônio Histórico do Ministério dos Transportes (PRESERVE) – mais os 12 km de linha até Tiradentes e a estação dessa cidade.
A ausência de política de destinação específica desse tipo de bem no âmbito da RFFSA criou uma situação que ainda perdura e que classificarei como “estranha”, para evitar adjetivos menos civilizados.

A Ferrovia Centro-Atlântica S.A. (FCA) foi a concessionária arrematante da malha Centro-Leste, correspondente às SR-2 (Belo Horizonte), SR-7 (Salvador) e SR-8 (Campos) da RFFSA.

RFFSA, superintendências regionais (SR) entre 1991 e 1993.

Fonte: Centro-Oeste Brasil. URL: http://vfco.brazilia.jor.br/RFFSA/regionais/1991-ferrovia-RFFSA-mapa-Superintendencias-Regionais.shtml, visitado em 12/06/2022.

É importante lembrar que o museu ferroviário, portanto, o Complexo Ferroviário de São João del-Rei, mais os 12 km de linha e as estações de Chagas Dória e Tiradentes eram administrados pela RFFSA SR-2 como um bem de valor histórico-educativo-cultural desde 1984. Seu tombamento, realizado em processo aberto em 1985 (Processo DTC-SPHAN 1.185-T-85) foi votado em conselho em 1989, sob a relatoria de Max Justo Guedes, reforçando sua importância como patrimônio histórico-educativo-cultural, com registro nos livros do tombo histórico e de belas artes no âmbito federal.
Pois, como a privatização, em 1996, do transporte ferroviário – tecnicamente a concessão da malha e arrendamento dos ativos – não contemplava absolutamente nada além do transporte de bens e mercadorias, esse tipo de sítio ligado à cultura e seus mecanismos entrou no que podemos chamar de limbo operacional.

A concessão da FCA, em termos objetivos, pode ser verificada pelo Decreto 4339 de 26 de agosto de 1996. O decreto, com três artigos, diz:

“Art. 1° Fica outorgada à empresa Ferrovia Centro-Atlântica S.A., com sede à Rua Sapucaí, 383, na cidade de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, a concessão da exploração e desenvolvimento do serviço público de transporte ferroviário de carga na Malha Centro-Leste, ferrovia localizada nos Estados de Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Sergipe e Distrito Federal, destacada do sistema ferroviário operado pela Rede Ferroviária Federal S.A. - RFFSA, nos termos do modelo de desestatização do serviço público de transporte ferroviário da RFFSA, aprovado pela Comissão Diretora do Programa Nacional de Desestatização-PND e ratificado pelo Conselho Nacional de Desestatização-CND.

Art. 2° A concessão de que trata o artigo anterior efetivar-se-á mediante celebração de Contrato de Concessão, cuja minuta integra o Edital do BNDES n° PND/A-03/96/RFFSA, a ser firmado entre a União, por intermédio do Ministério dos Transportes, e a empresa Ferrovia Centro-Atlântica S.A.

Art. 3° Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 26 de agosto de 1996; 175° da Independência e 108° da República.”

Resumindo: a função e o papel da FCA S.A. – hoje parte da empresa Valor Logística Integrada (VLI) – são inteiramente voltados ao “serviço público de transporte ferroviário de carga na Malha Centro-Leste” e nada mais. Essa informação nos leva a compreender que a presença da VLI/FCA como detentora do uso do Complexo Ferroviário de São João del-Rei, mais os 12 km de linha entre este e a estação de Tiradentes e todo o equipamento e acessórios, bens móveis, imóveis e integrados é ILEGAL.
Poderíamos dizer que é “irregular”. Porém, “irregular” seria um eufemismo para uma situação provisória de 2001, que preconizava a condição acima para a duração de 6 (seis) meses e que, na data de hoje, 13 de junho de 2022, portanto 21 (vinte e um) anos depois, é ainda a vigente.
Então, devemos ser claros e objetivos: a situação ilegal em que se encontra a relação da VALI/FCA com o sítio referido é ILEGAL e os responsáveis por esta condição, de acordo com a Lei n° 11.483, de 31 de maio de 2007, são o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), destaque à Superintendência de Minas Gerais, e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT). O beneplácito é assumido pelo Ministério Público Federal (MPF), objetivamente a Procuradoria da República de São João del-Rei, em condição clara de omissão frente ao mau uso de um bem público da União.

Os artigos da Lei n° 11.483, de 31 de maio de 2007 aplicáveis, neste caso, são:

Art. 8º Ficam transferidos ao Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes - DNIT:

I - a propriedade dos bens móveis e imóveis operacionais da extinta RFFSA;

II - os bens móveis não-operacionais utilizados pela Administração Geral e Escritórios Regionais da extinta RFFSA, ressalvados aqueles necessários às atividades da Inventariança; e

III - os demais bens móveis não-operacionais, incluindo trilhos, material rodante, peças, partes e componentes, almoxarifados e sucatas, que não tenham sido destinados a outros fins, com base nos demais dispositivos desta Lei.

IV – os bens imóveis não operacionais, com finalidade de constituir reserva técnica necessária à expansão e ao aumento da capacidade de prestação do serviço público de transporte ferroviário.

§ 1º  A vocação logística dos imóveis de que trata o inciso IV do caput deste artigo será avaliada em conjunto pelo Ministério dos Transportes, Portos e Aviação Civil e pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, conforme estabelecido em ato do Poder Executivo federal.

§ 2º Os imóveis operacionais que não sejam utilizados em atividades relacionadas com o transporte ferroviário poderão ser reclassificados como não operacionais.

§ 3º As demais condições para a reclassificação a que se refere o § 2º deste artigo serão estabelecidas em ato da Secretaria do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.

Art. 9o Caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção.

§ 1o Caso o bem seja classificado como operacional, o IPHAN deverá garantir seu compartilhamento para uso ferroviário.

§ 2o A preservação e a difusão da Memória Ferroviária constituída pelo patrimônio artístico, cultural e histórico do setor ferroviário serão promovidas mediante:

I - construção, formação, organização, manutenção, ampliação e equipamento de museus, bibliotecas, arquivos e outras organizações culturais, bem como de suas coleções e acervos;

II - conservação e restauração de prédios, monumentos, logradouros, sítios e demais espaços oriundos da extinta RFFSA.

§ 3o As atividades previstas no § 2o deste artigo serão financiadas, dentre outras formas, por meio de recursos captados e canalizados pelo Programa Nacional de Apoio à Cultura - PRONAC, instituído pela  Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991.

São 21 anos de privatização de um espaço público, conduzido sob regras incondizentes com seu status e proposta como bem de valor histórico-educativo-cultural, com um museu que teve sua reserva técnica destruída e não prima pelos valores e princípios de uma instituição museológica em um ambiente classificado como patrimônio histórico-cultural encontrado em um espaço de valor arqueológico industrial de acordo com a Carta de Nizhny Tagil no âmbito do The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage (TICCIH), órgão consultor do ICOMOS-UNESCO.

Aspecto dos fundos do Complexo Ferroviário de São João del-Rei sob ocupação da VLI-FCA. 2011. Fotografia: Bruno Campos.


Um comentário:

Dredd disse...

Resumindo a senvergonhice histórica com as ferrovias brasileiras continua até hoje e nosso patrimônio público e diariamente dilapidado e subtraído diariamente o povo não tem mais direito ao trem devido a burrice e má fé de governo após governo tiraram o direito do povo ao trem !!!