domingo, 12 de junho de 2022

Recatalogando uma fotografia mal catalogada pelo Arquivo Nacional

Como um erro de catalogação fotográfica pode induzir ao erro um pesquisador?

O equívoco aqui apresentado não é exclusivo. A documentação do Arquivo Nacional possui vários erros na catalogação de arquivos de ferrovias e, creio, de outros setores e temas. Mas, esse caso é ilustrativo da dificuldade que instituições públicas brasileiras têm em trabalhar com informação histórica de determinados temas.

O caso

Durante a pesquisa que resultou em minha tese de doutorado em história, deparei-me com uma fotografia de grande interesse, pois, de qualidade rara para o período retratado. Essa imagem se insere em um triângulo de confusões sobre ferrovias construídas no Brasil do século XIX.

A Estrada de Ferro Príncipe do Grão Pará foi uma ferrovia na região serrana do Rio de Janeiro e existiu como continuidade à Estrada de Ferro de Petrópolis, aquela a que popularmente chamamos de “Ferrovia de Mauá”. Pois, a EFPGP não apenas dava continuidade à antiga ferrovia construída por Irineu Evangelista de Sousa, ela arrendava a pioneira e a modificava tecnicamente para gerar uma continuidade completa. Por que?

A Estrada de Ferro de Petrópolis, construída e administrada pela Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro Petrópolis, existiu sob a concessão provincial de 27 de abril de 1852.

“O presidente da companhia era o próprio Irineu Evangelista de Souza [...], a direção dos trabalhos ficou por conta de J. E. Cliffe, os dois engenheiros eram William Bragge e R. Millagan.”[1]

A estrada original, então, era uma empreitada de Irineu Evangelista e construída por engenheiros britânicos, com material britânico para rodar locomotivas e carros/vagões britânicos. A bitola adotada para a via era exatamente a mesma de duas companhias de estrada de ferro da Escócia que existiram, em sua forma original, entre o final da década de 1830 e o final da década de 1840: a Dundee & Abroath Railway (1836-1847) e a Arbroath & Forfar Railway (1838-1848)[2]: 5 pés e 6 polegadas (1.676 mm).

Já a Estrada de Ferro Príncipe do Grão Pará foi construída e administrada pela Companhia Estrada de Ferro Príncipe do Grão Pará, após esta adquirir a concessão provincial de 28 de fevereiro de 1879 de Miguel e Pandiá Calógeras e arrendar a antiga Estrada de Ferro de Petrópolis. O projeto da via ficou a cargo de Joaquim M. R. Lisboa e a bitola adotada foi a de 1.000 mm (1 metro).

A fotografia


A fotografia catalogada no Arquivo Nacional sob o código BR_RJANRIO_O2_0_FOT_0201_d0006de0009, pertencente ao Fundo “Fotografias Avulsas - BR RJANRIO O2” apresenta o que seria uma locomotiva da Estrada de Ferro Príncipe do Grão Pará. A descrição da coleção em que ela se encontra é “Fotografias estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará em construção”.

Essa imagem data de 1867, quando a Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará ainda não existia. Inclusive, um dos concessionários do contrato em que ela se baseia, de 1879, ainda não havia nascido, o menino Pandiá Calógeras – que assinava junto com o pai, Miguel Calógeras.

A fotografia de 1867 retrata uma estrada de ferro tipicamente britânica, construída com trilhos laminados do tipo Bullhead de perfil de dupla cabeça (double headed rail), em bitola larga. A Estrada de Ferro Príncipe do Grão Pará foi idealizada e construída em um período de predomínio da opção por vias de bitola estreita, refletindo na escolha de Lisboa pela bitola métrica (1.000 mm). Da mesma forma, ao contrário da fixação complexa exigida pelo Bullhead, o trilho Vignole da EFPGP era fixado por pregos americanos típicos da Tredegar Iron Works, que seriam chamados popularmente, no Brasil, de “asa de barata” e “cabeça de cachorro”, dependendo do formato da cabeça. Portanto, enquanto os trilhos Bullhead exigiam maiores paramentos e peças extras, como talas e apoios de encaixe, os trilhos Vignole da EFPGP eram suportados apenas pelos pregos “asa de barata” para prendê-los aos dormentes de madeira.

Perfis de trilhos do tipo Bullhead: simples (esquerda) e dupla (direita) cabeças.
Fonte: FIGUIER, Louis. “Locomotive et chemin de fer”. Les Merveilles de la Science ou description populaire des inventions modernes, 1867-1891, Tome 1. Paris: Furne, Jouvet Et Cie, Éditeurs, Rue Saint-André-Des-Arts, 45, 1867, p. 351.
Perfis de trilhos dos tipos Patin (esquerda) e Vignole (direita).
Fonte: FIGUIER, Louis. “Locomotive et chemin de fer”. Les Merveilles de la Science ou description populaire des inventions modernes, 1867-1891, Tome 1. Paris: Furne, Jouvet Et Cie, Éditeurs, Rue Saint-André-Des-Arts, 45, 1867, p. 351.

A Estrada de Ferro Petrópolis (“Ferrovia de Mauá”), utilizava trilhos do tipo Brunel ou do tipo Barlow, já considerados obsoletos na década de 1850. Há uma desconfiança de que poderia ser material reutilizado de ferrovias da Grã-Bretanha. Não é possível afirmar sem haver fontes confiáveis, porém, é inegável que coincide com um período de renovação das linhas na grande ilha, devido à difusão da técnica de laminação desde 1839, que possibilitava a proliferação dos trilhos Vignole e Bullhead.



Perfis de trilhos dos tipos Brunel (esquerda) e Barlow (direita).
Fonte: FIGUIER, Louis. “Locomotive et chemin de fer”. Les Merveilles de la Science ou description populaire des inventions modernes, 1867-1891, Tome 1. Paris: Furne, Jouvet Et Cie, Éditeurs, Rue Saint-André-Des-Arts, 45, 1867, p. 351.

Outro detalhe importante: a fotografia mostra uma locomotiva tipicamente britânica de bitola larga e a EFPGP se caracterizava pelas locomotivas americanas para trechos planos (e americanas e suíças para trechos inclinados), obviamente, de bitola estreita. Uma fotografia corretamente catalogada pelo próprio Arquivo Nacional retrata os primeiros momentos da Estrada de Ferro Príncipe do Grão Pará, ilustrando as diferenças apontadas acima.


A fotografia arquivada como BR_RJANRIO_O2_0_FOT_0256_d0001de0017, também do fundo “Fotografias Avulsas” e descrita como parte da coleção “Fotografias Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará, da Raiz da Serra de Petrópolis ao centro da cidade” de forma correta, mostra uma locomotiva americana da Baldwin Locomotive Works, do período Burnham, Parry, Williams & Co., no dia da inauguração em 1883. Entre os homens a posar para a fotografia, pelo menos um é conhecido: o engenheiro Miguel Detsi, que se encontra sentado na dianteira do veículo.

Cinquenta anos depois, em 1933, o mesmo Miguel Detsi, na mesma posição sobre uma locomotiva similar (ou a mesma reconstruída com nova caldeira pela Leopoldina Railway Company, que encampou várias ferrovias em bitola estreita do RJ e MG), comemora o cinquentenário, registrado em fotografia exposta no Museu Imperial.


Conclusão

A fotografia de 1867, na verdade, só pode ser o registro de uma ferrovia construída em território brasileiro, que se encaixa nas descrições técnicas e iniciou sua operação no mesmo ano: A Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, construída e operada pela São Paulo Railway Company Limited até 1949. Essa noção se baseia no alto investimento realizado para a EFSJ pela SPR e a alta perspectiva de lucratividade de domínio do porto de Santos e privilégio de zona entre Jundiaí e Santos, o que colocava São Paulo, capital, no centro desse privilégio. As outras ferrovias de perfil e capital britânico do período, também em bitola irlandesa de 1.600 mm), as Bahia e São Francisco (Bahia and São Francisco Railway Company Limited) e a Recife e São Francisco (Recife and São Francisco Railway Company Limited) não adotavam trilhos Bullhead em suas vias.

Outro ponto é que o homem de barba à frente da máquina apresenta alguma semelhança com o engenheiro em chefe da SPR, o escocês James Brunlees (1816-1892), que dirigiu a construção da estrada, em versão mais jovem.



[1] SANTOS, Welber Luiz dos. American Way of Rails: tecnologia e a construção da Estrada de Ferro D. Pedro II em perspectiva atlântica e no contexto da segunda escravidão (1835-1889). Mariana, MG. 2021. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, p. 179.

[2] Sobre as ferrovias do Reino Unido até 1842, cf. WHISHAW, Francis. The Railways of Great Britain and Ireland: practically described and illustrated. Londres: John Weale, 1842.

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