A referência mais antiga à ponte defronte à Estação Ferroviária de São João del-Rei, encontrada até o momento, está presente na Ata da Sessão 38 da Câmara de Vereadores, de 12 de março de 1887.
A Companhia Estrada de Ferro Oeste de Minas foi fundada dez anos antes, em março de 1877, e a inauguração da estação, que era a principal da linha, se deu em agosto de 1881. Pela posição da edificação no terreno, com a passagem do Córrego do Lenheiro logo em frente, cortando a cidade em duas partes quase simétricas, ou seja, metade da cidade se encontrava do outro lado do ribeirão, ficava evidente a necessidade de uma ponte de pedestres e que fosse, também, de passageiros da estrada de ferro, sendo o principal destino de transeuntes da cidade nessa porção ainda pouco ocupada no período.
Essa primeira referência dá conta de um caráter provisório da “pinguela”. Na referida ata de 12 de março de 1887, segundo Gaio Sobrinho, teria-se lido um “ofício assinado pelo Sr. Teófilo e Joaquim Ramalhão declarando terem, com o auxílio de vários cidadãos, construído um pontilhão tosco de madeira em frente à Estação da Oeste e sobre o ribeirão que atravessa esta cidade a bem do interesse público e comercial”.
Nos dias finais do ano seguinte, 1888, consta no jornal A Verdade Política que uma subscrição fora realizada no intuito de gerar fundos para a reconstrução da malfadada ponte.[1] Tal referência indica que, realmente, a ponte erguida no ano anterior era realmente “tosca” e mal estruturada.
Em 1899 a cena havia mudado e a ponte já era, no geral da estrutura, o que se apresenta ainda hoje. O jornal S. João d’El-Rey dava conta de que a ponte era assoalhada com pranchões de 2 metros de largura e inteirava o comprimento de 35 metros, estabelecida acima da altura das máximas cheias do Lenheiro. O mais interessante, porém, é que dessa vez a ponte fora edificada com trilhos.[2]
“O ferro, pela especificidade de sua utilização, que estava sujeita à aplicação de princípios técnicos racionais, manteve certa independência em relação a outros materiais no seu emprego em programas arquitetônicos. Verificou-se um desenvolvimento tanto na produção dos metais ferrosos quanto no seu uso. Inicialmente, foi empregado o ferro fundido; em seguida, o ferro propriamente dito (ferro doce ou obtido por meio de pudlagem), destinado a ser forjado, laminado ou prensado em chapas; e, finalmente, o aço. No decorrer do século houve o aperfeiçoamento dos estudos de resistência dos materiais, da estática e dos métodos de cálculo. Progressivamente, após um período inicial em que o ferro recebia um tratamento formal mais apropriado aos materiais tradicionais, suas características técnicas e estéticas passaram a ser mais bem exploradas, fazendo dele um dos únicos materiais, durante o século, a atingir expressão formal própria. Suas particularidades encontraram nos programas que surgiram, tais como pavilhões de exposição, estações ferroviárias e lojas de departamento, um campo privilegiado para novas experiências. A arquitetura do ferro adquire, dessa forma, um valor simbólico e um papel de destaque, na medida em que possibilitou uma renovação da linguagem arquitetônica, abrindo uma das vias para o racionalismo. Contudo, deve-se lembrar que os pioneiros e teóricos das construções de ferro eram uma minoria, e sua influência foi relativamente restrita na época.”[3]
Materiais
A ponte foi construída com trilhos da ferrovia, mas não há fonte que confirme que foi construída pela companhia ferroviária, apesar de ser uma possibilidade. Os trilhos utilizados são os mesmos que formavam as vias em bitola 0,76m que chegavam à cidade, partindo de Sítio, e continuavam, a partir de São João del-Rei, em direção a Barra do Paraopeba, às margens do Rio São Francisco, que tecnicamente chamamos de TR17, que significa que o trilho pesava 17kg por cada metro linear.
Pois, construída pela combinação de trilhos e gradis de ferro, tornou-se uma das marcas registradas da paisagem da cidade, composta por várias pontes sobre o Córrego do Lenheiro, formando uma paisagem bastante característica.
Os registros fotográficos mais antigos são do início do século XX, que mostram o prédio da estação ainda em suas formas originais, mas a ponte já em sua forma definitiva, exceto pelo uso de laje de concreto, feita, mais provavelmente, pela RFFSA.
A passarela de trilhos não só compõe efetivamente a paisagem da cidade no ambiente mais amplo, bem como é definitivamente parte, há muito, essencial na composição da própria fachada da estação. E, juntamente com essa e o complexo ferroviário, é parte do patrimônio edificado em sentido lato e, especificamente, um exemplar singelo da arquitetura do ferro e do patrimônio industrial, em vários dos seus aspectos.
Construída de maneira simples, mas bastante eficiente, a ponte conta com dois cavaletes que formam a base para a obtenção de três arcos abatidos, com todas as peças principais compostas por trilhos, amarradas por braçadeiras com talas internas ou externas, presas por parafusos e porcas, sendo a ponte, portanto, uma estrutura móvel e de fácil reparação, sem uso de soldas e afins, sendo preservada justamente em seus aspectos e características originais no que tange à estruturação.
“O património industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitectónico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infra-estruturas, assim como os locais onde se desenvolveram actividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação.
A arqueologia industrial é um método interdisciplinar que estuda todos os vestígios, materiais e imateriais, os documentos, os artefactos, a estratigrafia e as estruturas, as implantações humanas e as paisagens naturais e urbanas[2], criadas para ou por processos industriais. A arqueologia industrial utiliza os métodos de investigação mais adequados para aumentar a compreensão do passado e do presente industrial. O período histórico de maior relevo para este estudo estende-se desde os inícios da Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, até aos nossos dias, sem negligenciar as suas raízes pré e proto-industriais. Para além disso, apoia-se no estudo das técnicas de produção, englobadas pela história da tecnologia.”[4] (grifos nossos)
A unidade possui valor de conjunto, conforme integra a paisagem da cidade e do complexo ferroviário (tombado pelo processo 1.185-T-85 do IPHAN) e valor individual, visto que representa uma mudança na forma de construir pontes urbanas e, na cidade, é uma peça não redundante construída sob projeto exclusivo.
Sobre a arquitetura do ferro
A [famosa] Ponte do Severn, sobre rio homônimo, em Coalbrookdale, é um dos exemplos mais antigos da moderna técnica do uso do ferro, que influenciou a construção de pontes metálicas, de forma dominante, dentro e fora das cidades durante todo o século XIX.
A Forth Bridge, na Escócia, monumento exemplar da arquitetura do ferro
Talvez possa-se afirmar que é a edificação que torna definitiva a confiança na estrutura de ferro, que se desenvolve profundamente no oitocentos e é um dos grandes ganhos no desenvolvimento da arquitetura do ferro e nos alicerces técnicos que permitirão o advento da chamada “Arquitetura Moderna” no século XX.
Somado ao fato de que os trilhos ferroviários são resultado de um grande avanço no decorrer do século XIX, graças ao processo de laminação[5], a evolução entre o uso do ferro fundido e o aço, propriamente dito, consolidou as possibilidades dos múltiplos perfis e reforço das condições de uso do ferro pela maior flexibilidade propiciada pelo aço, pela redução de carbono na composição da liga[6].
A construção civil ganhou grande reforço estrutural por tal condição técnica e essa ampliação da necessidade de ferro e aço gerou linkages positivos e negativos propiciados pela indústria metalúrgia no tocante às necessidades crescentes por mais combustíveis para alimentar os fornos e altos-fornos das usinas.
As cidades, de forma especial e em escala exponencial, foram o ambiente mais propício para receber o ferro definitivamente como parte da paisagem.
[1] A Verdade Política, n.14, 21/12/1888.**
[2] S. João d’El-Rey, n.3, 22/02/1899.**
[3] KÜHL, Beatriz Mugayar. Arquitetura do Ferro e Arquitetura Ferroviária em São Paulo: reflexões sobre a sua preservação. São Paulo: Ateliê Editorial: Fapesp: Secretaria da Cultura, 1998, p.21.
[4] TICCIH. Carta de Nizhny Tagil sobre o Patrimônio Industrial. 2003.
[5] “Laminação pode ser definida como um processo de conformação de metais onde estes passam por entre dois rolos giratórios que os comprimem, e têm sua espessura diminuída e seu comprimento aumentado. É um processo que permite obter alta produtividade e boa precisão dimensional, além de uma certa variedade de formas. Neste processo o material é submetido a altas tensões compressivas, resultante da ação direta dois rolos, e a tensões cisalhantes superficiais, resultantes do atrito entre os rolos e o material. Estas tensões de fricção também são responsáveis pelo tracionamento do material, assim puxado para fora do espaço entre os rolos (cilindros) de laminação...” Fonte: http://www.infomet.com.br/site/acos-e-ligas-conteudo-ler.php?codConteudo=238, visitado em 08/04/2016.
[6] “O ferro fundido é uma combinação do ferro com certa quantidade de carbono, geralmente superior a 2,5%, e que pode estar compreendida entre 2% e 6%. Além do carbono, o ferro fundido pode conter uma pequena quantidade de outros materiais, tais como silício, fósforo ou enxofre. Pode ser obtido diretamente do minério de ferro, através de processos que exigem elevadas temperaturas em altos-fornos. Seu ponto de fusão varia de 1.050° C a 1.250° e, uma vez solidificado, o material apresenta grande resistência à compressão, mas, ao contrário do ferro e do aço, tem uma resistência pequena à tração e à flexão. O ferro propriamente dito pode ser obtido diretamente do minério de ferro, quando a porcentagem do metal nele presente é significativa, mas isso é raro. Normalmente, o ferro provém da “purificação” do ferro fundido, extraindo-se deste certa quantidade de carbono, através de uma corrente de ar com temperatura bastante elevada. O ferro contém de 0,05% a 0,15% de carbono, sendo às vezes malaxado para retirar outras impurezas. Sua temperatura de fusão é bastante alta, de 1.770° e a 1.800°, e tem resistência à tração e à compressão semelhantes.
O aço é obtido através de processos metalúrgicos de descarburização do ferro fundido. Sua quantidade de carbono varia entre 0,20% e 1 %, atingindo excepcionalmente 1,5%. Seu ponto de fusão está compreendido entre 1.400° C e 1.600° C, e apresenta uma resistência à tração e compressão geralmente maior do que a do ferro. As cargas médias de ruptura apresentadas a seguir (em quilograma por milímetro quadrado) eram as comumente adotadas para os cálculos (lembrando que para o ferro e para o aço, as cargas de ruptura de tração e compressão são semelhantes): 12 ferro fundido - tração: 12,5; compressão: 60,0; ferro: 33,0; aço: 45,0. O emprego do ferro em construções passou por renovado desenvolvimento no decorrer dos anos 1850-1860, devido a transformações nos processos de produção. Os progressos da metalurgia possibilitaram a melhora das qualidades específicas do material e o aumento do volume da produção. Pesquisavam-se métodos mais econômicos de fabricação do ferro, pois a procura por esse material aumentara, apesar de seu preço elevado. Novos processos de purificação permitiam a obtenção do ferro a partir da descarburização do ferro fundido, através de uma corrente de ar quente nos fornos de revérbero. Estes eram compostos por compartimentos separados para o metal e para o combustível, que era a hulha. A invenção desse processo de pudlagem por Henry Cort em 1784 permitiu o aumento da capacidade produtiva das usinas, mas esse método foi introduzido na Europa continental no início do século XIX e somente se difundiu a partir da segunda década do século passado. O método de pudlagem foi seguido pela introdução de processos de laminação, em lugar do emprego de martelos. A laminação, contudo, só passou a ser utilizada em maior escala nos anos 1840, para a produção de trilhos e peças para tesouras. Começaram a circular no mercado, em meados do século, perfis U, T ou 1, e também chapas, com preços menos elevados. O desenvolvimento da técnica de utilização de rebites permitiu a junção mais fácil e eficiente entre as peças. Os perfis compostos permitiam as mais diversas configurações, exigidas pelos mais variados projetos. Desse modo, as vigas formadas por perfis compostos iriam substituir, aos poucos, as peças fundidas, que eram mais frágeis.” KÜHL, Beatriz Mugayar. Arquitetura do Ferro e Arquitetura Ferroviária em São Paulo: reflexões sobre a sua preservação. São Paulo: Ateliê Editorial: Fapesp: Secretaria da Cultura, 1998, p.30-31.
**Agradeço ao Ulisses Passarelli por essas referências, encontradas em seu blog Tradições Populares das Vertentes.
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