sábado, 29 de outubro de 2011

A estação ferroviária de Tiradentes (das lesões de um pragmatismo danoso)

 

Autor: Jonas Augusto Martins de Carvalho (Complementado pelo autor do blog)

A Estação de Tiradentes foi inaugurada com o nome de São José d’El-Rei em 28 de agosto de 1881, ocasião na qual entrou oficialmente em operação a Estrada de Ferro Oeste de Minas, partindo da então estação de Sítio, hoje Antônio Carlos-MG, e com ponto final na estação de São João del-Rei.

São José d’El-Rei mudou de nome para Tiradentes em 06/12/1889, vinte e dois dias após a Proclamação da República. A estação, no entanto, continuou com o nome original até fins de 1890, quando seu nome foi finalmente alterado para Tiradentes, devido à Proclamação da República.

O município de São José, principalmente os distritos, possuía uma produção agrícola tanto de subsistência quanto para o abastecimento, que permitia aos negociantes locais a destinação de parte da produção tanto para os mercados locais quanto interprovinciais, como da Corte do Rio de Janeiro[1], sendo a estação utilizada para o transporte de gêneros. Negócios esses que sofreram os efeitos da concorrência de outras regiões, como a crescente Zona da Mata Mineira e se viram em decadência ainda nos finais do século XIX.

Às margens da ferrovia, nos arredores da estação ferroviária, foram instaladas provavelmente as duas pioneiras indústrias de Tiradentes: uma olaria e uma fábrica de cal, sobre as quais não possuímos maiores informações referentes à capacidade e real impacto. A fábrica de cal permaneceu ativa até a década de 1960. Já a olaria foi desativada na década seguinte. A estação então passou a servir quase que básica e exclusivamente ao transporte de passageiros e de pequenas mercadorias.

Em 1984, no governo do Presidente João Figueiredo, com o plano de erradicação de ramais considerados antieconômicos, todo o trecho de bitola de 0,76m que ainda existia foi extinto, permanecendo apenas o trecho entre São João del-Rei e Tiradentes, mantido exclusivamente para atividade turística.

Com o passar dos anos, acompanhando as transformações econômicas da região à que servia, a estação passou por reformas e adaptações visando adequá-la de maneira eficiente aos novos usos.

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Estação de Tiradentes, 1920 (acima) e 1950 (abaixo). Notar a “terceira” linha, no canto esquerdo da foto. Esta linha dava acesso à antiga fábrica de cal. Fotos: Mucio Jansen Vaz. Estrada de Ferro Oeste de Minas – Trabalho histórico descriptivo e Acervo NEOM-ABPF, respectivamente.

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Estação de Tiradentes, 6/6/1971. Trem especial de passageiros tracionado pela locomotiva nº68. Notar a linha em direção ao fotógrafo. Esta linha dava acesso à antiga olaria (acima). A locomotiva n°55 tracionando trem de lastro procedente de Barroso, com destino a S. João del-Rei (abaixo). Fotos: Acervo NEOM-ABPF e Julio Moraes, respectivamente.

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Estação de Tiradentes, aspectos, 1978. Acervo NEOM-ABPF.

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Estação de Tiradentes, dia da festa popular denominada “Jubileu da Santíssima Trindade”, 1982: destaque para o grande movimento de passageiros na data, com dois trens paralelos. Foto: Acervo NEOM-ABPF.

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Estação de Tiradentes, 1986. Foto oficial do Tombamento Federal, Processo 1.185-T-85 (acima). Estação de Tiradentes, 1978. Aspecto nos anos finais da operação normal da estrada de ferro (abaixo). Foto: RFFSA/PRESERVE e Ron Ziel, respectivamente.

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A descrição feita pela arquiteta da DTC/SPHAN corresponde ao aspecto do edifício nesta ocasião:

“...Típica estação rural (country house) do final do século XIX, feita com alvenaria de tijolo, piso tabuado, forro de madeira e telha francesa. Possui jardim lateral com fonte no centro, em nível inferior ao da estação, protegido por grade de ferro. A cobertura da plataforma se estende muito além da estação. É constituída de telhas de cimento amianto com desenho e disposição de ardósia, apoiadas sobre estrutura de madeira que repousa em pilares de ferro dispostos a intervalos regulares. Toda a base do telhado é arrematada com lambrequins de madeira. O corpo da estação foi acrescido de vários cômodos em sua parte posterior e teve alterações no seu interior provenientes de obra recente.

A fachada lateral é enquadrada por pilastras salientes, possui janela dupla no centro com cercadura única (a exceção do parapeito), frontão triangular e óculo central.

A fachada de maior dimensão é dividida em três planos marcados por pilastras salientes, sendo cada um guarnecido por: duas portas o primeiro, porta e janela o segundo, e janela o último. As cercaduras dos vãos são duplas na parte de cima e primeiro terço superior.”[2]

Informação nº 102/86, página 23. Célia Perdigão Gelio - Arquiteta da DTC/SPHAN

Essa informação é parte integrante do Processo 1.185-T-85, processo o qual culminou com o Tombamento Federal de todo o Complexo Ferroviário de São João del-Rei, mais a Estação de Tiradentes, refletindo portanto as condições do edifício quando o mesmo foi PROTEGIDO POR FORÇA DE LEI.

O Decreto-Lei Nº25 de 30 de novembro de 1937, assinado pelo então Presidente Getúlio Vargas, ano em que o SPHAN (atual IPHAN) foi criado, define o seguinte quanto a bens tombados:

Art. 11. As coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades.

Parágrafo único. Feita a transferência, dela deve o adquirente dar imediato conhecimento ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – acréscimo nosso).

Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço [Instituto] do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa de cinquenta por cento do dano causado.

Parágrafo único. Tratando-se de bens pertencentes à União, aos Estados ou aos municípios, a autoridade responsável pela infração do presente artigo incorrerá pessoalmente na multa.

Art. 18. Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso a multa de cinquenta por cento do valor do mesmo objeto.

Portanto, uma vez protegido, neste caso o mecanismo de proteção utilizado foi o Tombamento (tutela do Estado); o imóvel não poderá ser alterado. As características encontradas no ato do inventário são as características que constam no processo de tombamento, e, portanto, foi aquilo que deveria ser protegido. Qualquer modificação que por ventura venha a ser realizada incorrerá em crime segundo a legislação sobre a proteção. O artigo 17 do Decreto-Lei nº25 é bem claro, e prevê somente, mediante autorização do órgão competente, neste caso o IPHAN, serviços de pintura, reparação ou restauração no bem protegido. Portanto, de maneira alguma pode-se realizar reforma, alteração de paredes, fachadas, realocação de esquadrias, etc.

As intervenções necessárias apresentavam apenas uma questão de conservação, nada havia de ser alterado, em momento algum. O que está explícito e implícito no instituto do tombamento, que é a tutela e proteção do Estado, é a necessidade da conservação do bem dentro das características em que foi reconhecido como monumento nacional.

A restauração, praticada casualmente desde os renascentistas e tornada disciplina acadêmica em franco desenvolvimento desde a terceira década do século XIX[3], que requer, de acordo com as condições modernas de preservação, o diálogo interdisciplinar, vem sofrendo um profundo golpe com tais intervenções e o excesso de pragmatismo daqueles que pouco se interessam de fato pela preservação de nosso patrimônio edificado.

O estado em que a estação se encontrava no ato do tombamento era o resultado das transformações ocorridas ao longo dos anos de operação comercial, sendo a mesma testemunha da evolução econômica daquele local, trazendo em si as marcas do tempo. Um bem histórico só tem valor pelo fato de o mesmo trazer consigo, por conseguinte, a sua história. Aqui nos valemos do princípio contemporâneo de reconhecimento do valor documental dos monumentos. Ou seja, a monumentalidade das edificações se insere num quadro em que as mesmas só se reconhecem como patrimônio cultural do ponto de vista em que representam o fazer humano em todos os períodos históricos, ou dentro dos sentidos estrito e lato de que o agora reconhecido monumento é testemunho vivo do processo vivido pelas necessidades econômicas, sociais e culturais em sua centena de anos.

“Existe um vasto instrumental teórico para esse fim, baseado em pelo menos dois séculos (cinco, se buscarmos as raízes da discussão no Renascimento) de formulações teóricas, associadas à experiências sistemáticas na prática que conduziram às atuais vertentes teóricas da restauração de bens culturais. (...) [R]estaurar não é voltar ao estado original, nem a um estágio anterior qualquer da história do monumento, nem refazer imitando estilos do passado, percepção oitocentista que infelizmente ainda marca a postura de muitos arquitetos sobre o assunto; o restauro não é mera operação técnica sobre a obra – deve ser necessariamente um ato crítico antes de se tornar operacional; projeto e criatividade fazem parte do restauro.”[4]

O ato de proteção engloba todas essas características, para que as mesmas não sejam perdidas ou esquecidas no tempo. Portanto, uma reforma ou uma tentativa de retornar o mesmo ao seu estado original desagrega todo o valor do monumento, tornando-o uma "falsificação grosseira".

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Estação de Tiradentes, 2003. Ainda mantinha todas as características presentes na ocasião do Tombamento. Observar a última janela, da esquerda para a direita (acima). Em 2004, a janela citada anteriormente substituída por uma porta (abaixo). Fotos: Tarcísio José de Souza e Bruno Campos, respectivamente.

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Estação de Tiradentes, 15/07/2011. Observa-se as "mutilações" (acima). Uma porta subtraída; mudança da janela do guichê de local, além da substituição das janelas da fachada lateral por uma porta. Em alteração realizada em 2004, uma porta (última, da esquerda para a direita) substituiu uma janela. Imagem oficial do Tombamento Federal, Processo 1.185-T-85 (abaixo). Fotos: Jonas Augusto e RFFSA/PRESERVE, respectivamente.

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Estação de Tiradentes, 15/07/2011. Observa-se uma das "mutilações", em que as duas janelas (abaixo, 2004) foram substituídas por uma porta (acima). Fotos: Jonas Augusto

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Observações:

Obras:
Contratante: Ferrovia Centro Atlântica S.A., do Grupo Vale (antiga Companhia Vale do Rio Doce);
Contratada: Construtora Baccarini

Pelo que se pode observar, a construtora responsável pelos trabalhos não possue especialização em restauro de bens culturais.

Sugestões bibliográficas para os responsáveis:

ICOMOS - Carta de Veneza

ICOMOS – Carta de Burra

ICCROM – Introdução à preservação de bens culturais para crianças (Eman Qara’een e Robert Parua)

ICCROM – Manual técnico para conservação de bens arquitetônicos (Jukka Jokilehto)

ICCROM - O Papel da Arquitetura na Conservação Preventiva (Franciza Toledo)

IPHAN – Processo de tombamento 1.185-T-85

PRESERFE/RFFSA – Manual para preservação de bens arquitetônicos ferroviários

BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.

KHÜL, Beatriz Mugayar. Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo: reflexões sobre a sua preservação. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.


[1] Cf. TEIXEIRA, Maria Lúcia R. Chaves. Família Escrava e Riqueza na Comarca do Rio das Mortes. São Paulo: Annablume, 2007; TEIXEIRA, Paula Chaves. Negócios Entre Mineiros e Cariocas: família, estratégias e redes mercantis no caso Gervásio Pereira Alvim (1850-1880). Dissertação de Mestrado em História. Rio de Janeiro: UFF, 2009.

[2] PERDIGÃO GELIO, Célia. (Arquiteta da DTC/SPHAN). In: IPHAN. Processo de Tombamento DTC-SPHAN 1.185-T-8, fl.23.

[3] CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: UNESP, 2000, pp.127-136.

[4] KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização: problemas teóricos de restauro. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008, p.32.

Um comentário:

eleandro disse...

se o IPHAN deixou ele é o dono o dono é quem sabe.