É de amplo conhecimento o
predomínio de mercado das locomotivas fabricadas em Filadélfia pela Baldwin
Locomotive Works para ferrovias do Império do Brasil e da Primeira
República. Apesar da presença de material rodante de tração das indústrias belga,
francesa, alemã e, sobretudo, britânica – a qual predominou pelo menos até 1862,
desta data em diante a fábrica de Mathias Baldwin foi o maior fornecedor desse
tipo de veículo para nosso território.
Entretanto, apesar de as
locomotivas Baldwin inclusive terem legado ao léxico popular o verbete “balduíno”[1], em referência a homem “forte
como uma locomotiva”, essas tinham a companhia de outras similares da indústria
dos Estados Unidos da América, apesar de relativamente poucas.
Rogers Locomotive & Machine
Works
A Rogers Locomotive &
Machine Works, ou simplesmente Rogers, foi uma das mais antigas oficinas de
construção de locomotivas na América do Norte.
Fundada em 1832 como Rogers,
Ketchum & Grosvenor, devido à parceria entre Thomas Rogers, Morris
Ketchum e Jasper Grosvenor, a oficina tinha como objeto a construção de
máquinas e teares para a indústria têxtil. Rogers logo interessou-se por
locomotivas para as nascentes estradas de ferro e, graças à sua extensa
experiência com o maquinário para tecelagens, decidiu desmontar uma locomotiva
inglesa comprada pela Paterson and Hudson River Railroad para compreender
o mecanismo específico desse tipo de máquina. Em 1835, após vários e extensos
desenhos, a RKG anunciou planos para fabricar suas próprias locomotivas.
As duas primeiras locomotivas
construídas por Rogers foram encomendadas pela Mad River and Lake Erie em
1837; a primeira delas foi a Sandusky, dada como a primeira locomotiva a
operar em Ohio. Já a mais famosa Rogers é a locomotiva General, que dá título
ao filme homônimo de Buster Keaton, com enredo sobre eventos ferroviários na "Guerra de Secessão", mais conhecida como "Guerra Civil Americana" devido à vitória
unionista (yankee).
A Rogers chegou a liderar o
mercado de locomotivas dos EUA na década de 1850, superando as outras duas maiores,
Baldwin e Norris.[2]
De acordo com os dados disponíveis,
a primeira locomotiva construída pela Rogers para uma ferrovia
brasileira foi uma Mogul (2-6-0) nomeada como “Antônio Carlos” para a
Estrada de Ferro Leopoldina, em 1878, a qual recebeu a companhia de mais duas
similares em 1879, a “Mello Barreto” e a “Jequitinhonha”. Outros clientes do
Brasil foram as estradas de ferro Barão de Araruama (1878), Madeira Mamoré (1878),
Paulo Afonso (1879), Santo Amaro (1878, 1891) e a União Federal (1890).
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Estrada de Ferro Leopoldina, locomotiva do tipo Mogul (2-6-0) "Antônio Carlos". |
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Estrada de Ferro Barão de Araruama, locomotiva do tipo Mogul tanque (2-6-0T) "Santa Maria Magdalena". |
Após a morte de Thomas Rogers, seu
filho, Jacob S. Rogers, reorganizou a Rogers, Ketchum & Grosvenor como
Rogers Locomotive & Machine Works. Com a aposentadoria de Jacob,
essa foi renomeada como Rogers Locomotive Company em 1893. Em 1907, a RLC
foi incorporada à American Locomotive Company (ALCO).
Danforth Locomotive & Machine Company
A Danforth é mais conhecida na
posteridade como Cooke Locomotive Works, razão social assumida em 1882.
Derivada da Rogers, a Danforth,
Cooke & Company foi uma fabricante de locomotivas fundada por John
Cooke e Charles Danforth em 1852. Cooke havia sido aprendiz e superintendente
na Rogers, Ketchum & Grosvenor até deixar esta para fundar sua
própria oficina. Devido a Danforth assumir a presidência em 1865, a empresa foi
renomeada como Danforth Locomotive & Machine Company. Ao assumirem a
direção em 1882, os filhos de John Cooke reorganizaram a companhia como Cooke
Locomotive and Machine Works, razão social mantida até a incorporação da AmericanLocomotive Company em 1901, da qual a Cooke foi uma das formadoras iniciais.
Até o momento, sabemos de apenas
uma locomotiva construída para o Brasil. A Danforth Locomotive & Machine
Company entregou uma pequena Montezuma (2-4-0) para a Estrada de Ferro
Pirahyense em 1880.
Rhode Island Locomotive Works
Fundada por Earl Philip Mason Sr. em
1865, a Rhode Island Locomotive Works era sediada em Providence, estado
de Rhode Island.
Assim como a Cooke, a RILW
foi uma das formadoras iniciais da ALCO.
O único cliente conhecido da Rhode
Island no território brasileiro foi a Companhia Estrada de Ferro
Sapucahy, que recebeu onze locomotivas entre 1890 e 91. Dessas, seis eram Mogul
(2-6-0), três American (4-4-0), uma Consolidation (2-8-0) e uma Boston
tanque (2-4-4T).
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Estrada de Ferro Sapucaí, locomotiva do tipo Boston tanque 2-4-4T "Christina", nº 1. |
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Estrada de Ferro Sapucaí, locomotiva do tipo Consolidation (2-8-0) "Itajubá", nº 5. |
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Estrada de Ferro Sapucaí, locomotiva do tipo American (4-4-0) ", representando as "Sapucahy", "Julio Brandão" e "Souza Ferraz", respectivamente nºs 6, 7 e 11. |
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Estrada de Ferro Sapucaí, locomotiva do tipo Mogul (2-6-0) "Cesário Alvim", nº 10, na estação de Christina, c. 1895. |
Brooks Locomotive Works
Também formadora inicial da American
Locomotive Company em 1901, a Brooks Locomotive Works foi fundada em
1869 por Horatio G. Brooks.
Como ex-engenheiro chefe da New
York & Erie Railroad (NY&ERR), Horatio alugou os prédios que
sediavam as oficinas dessa ferrovia em Dunkirk, depois que a NY&ERR moveu
essas oficinas para Buffalo, para fundar sua fábrica.
Entre todos os fabricantes aqui contemplados,
a Brooks foi a que mais locomotivas forneceu para uma ferrovia
brasileira. Além de um pequeno cliente, a Estrada de Ferro Santa Maria
Magdalena, para a qual entregou duas locomotivas tanque do tipo Columbia
(2-4-2T), seu grande cliente brasileiro foi a Estrada de Ferro Central do
Brasil, maior e mais importante ferrovia do país.
Ao todo, foram sessenta locomotivas Brooks para a EFCB fornecidas entre agosto de 1894 e fevereiro de 1895; dessas, quarenta foram para a malha em bitola irlandesa (larga de 1.600 mm) e vinte para a malha em bitola métrica (estreita de 1.000 mm). Entre as locomotivas para a bitola de 1.600 mm, quinze eram do tipo Mastodon (4-8-0) e vinte-e-cinco do tipo Suburban tanque (2-6-6T); já entre as destinadas à malha em bitola de 1.000 mm, quinze eram Mastodon e cinco do tipo American (4-4-0).
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Estrada de Ferro Santa Maria Magdalena, locomotiva tanque do tipo Columbia (2-4-2T), nº 2. Catálogo descritivo Brooks. |
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Estrada de Ferro Central do Brasil, locomotiva do tipo Mastodon (4-8-0) "24 de Maio", nº 230. |
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Estrada de Ferro Central do Brasil, locomotiva do tipo American (4-4-0) para bitola estreita. Catálogo descritivo Brooks. |
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Estrada de Ferro Central do Brasil, locomotiva tanque do tipo Suburban (2-6-6T) para bitola larga. Catálogo descritivo Brooks. |
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Estrada de Ferro Central do Brasil, locomotiva do tipo Mastodon (4-8-0) para bitola larga. Catálogo descritivo Brooks. |
Quadro com todas as locomotivas americanas não-Baldwin/pré-ALCO para ferrovias brasileiras
Fontes:
SMU - DeGolyer Library
Rogers Locomotive and Machine Works, Complete Record, 1837-1905. Disponível em:
https://digitalcollections.smu.edu/digital/collection/rwy/id/3801/rec/17. Acesso em: 24/02/2023.
Rhode Island Locomotive Works, Complete Record -- 1866-1902. Nos. 1 to
3376. Disponível
em: https://digitalcollections.smu.edu/digital/collection/rwy/id/3793/rec/12. Acesso em: 24/02/2023.
Cooke Locomotive Works, Complete Record from 1871 to 1902 with Partial
Record from 1853 to 1871. Disponível
em: https://digitalcollections.smu.edu/digital/collection/rwy/id/3794/rec/10
Brooks Locomotive Works, Complete Record 1869-1902, Nos. 1 to 4114. Disponível em:
https://digitalcollections.smu.edu/digital/collection/rwy/id/3805/rec/20.
Acesso em: 08/05/2023.
BROOKS LOCOMOTIVE WORKS. A Catalogue Descriptive of Simple and Compound Locomotives. Buffalo, NY: Matthews-Northrup Co., 1899.
ROGERS LOCOMOTIVE AND MACHINE WORKS, The. Locomotives and Locomotive Building: origin and growth of the Rogers Locomotive & Machine Works, Peterson, New Jersey, from 1831 to 1886. Nova Iorque: W. M. Gottsberger, 1886.
PS: Nenhuma das locomotivas acima foi
preservada.
PS2: Esta publicação e o quadro podem ser atualizados conforme novos dados apareçam.
Atualização:
Nicolas Burman informou-nos da
existência de locomotivas construídas pela Rome Locomotive Works (New
York Locomotive Works) para o Brasil. Ao abrir a lista disponível na SMU
- DeGolyer, verificamos que se tratava de duas locomotivas do tipo Double-Ender
para a obscura “Cia. Estrada de Ferro do Brasil”.
Segundo Bruno Tavares, se trataria
da “Companhia Geral de Estradas de Ferro”. Ao que Nicolas Burman emendou ao
informar que foi uma empresa incorporada pela diretoria da própria Leopoldina para
burlar dívidas acumuladas na conhecida onda de aquisição de outras ferrovias do
Norte Fluminense e da Zona da Mata Mineira. Assim, decidi consultar um artigo
que havia lido há exatos quinze anos, do historiador Peter Blasenheim. Este dá
uma resposta mais precisa sobre ao que se referia o “Cia. Estrada de Ferro do
Brasil” creditado na lista da RLW:
Num espírito de honestidade, provocado pela
esperança que a política de crédito fácil salvaria a ferrovia, os diretores
apresentaram um memorando sobre a crise em dezembro de 1890. A Leopoldina tinha
dívidas totalizando 97.000 contos (US$ 29.1 milhões) por causa de despesas
extraordinárias incorridas desde 1883. A manutenção de tantos quilômetros
adicionais de via inútil, continuou o relatório, impossibilitou o serviço
regular na rede inteira. No final, a gerência, frustrada e confusa, não
conseguia chegar a um acordo sobre uma política única, o que exacerbou ainda
mais o problema. Mas a legislativa estadual, que desconfiava de qualquer
petição apresentada pela Leopoldina, rejeitou este último apelo por auxílio.
Antes do fim do ano, a companhia se dissolveu
sem notificar as autoridades estaduais e nacionais nem os seus credores, e
fundou a Companhia Geral de Estradas de Ferro. Este esquema tinha como
objetivo evitar antigas dívidas e adquirir novos fundos. Conforme o senador
estadual Afonso Pena, a figura política mais respeitada de Minas no início da
década de 1890, a Companhia Geral fugiu com milhares de contos em impostos de
exportação devidos ao estado e falsificou suas contas para mostrar que suas
linhas mineiras (e não as do Rio) estavam perdendo dinheiro. As ferrovias
fluminenses, Pena lembrou ao Senado, não tinham juros garantidos. As assertivas
de Pena eram verdadeiras e os diretores da Companhia Geral eram todos
prisioneiros ou fugitivos até 1892. A antiga gerência foi substituída pelo
governo nacional e a Leopoldina reorganizada vendeu obrigações na bolsa de
valores de Londres para arrecadar fundos.[3]
De vida curta, a RLW fabricou um total de seiscentos e noventa e cinco locomotivas. As duas destinadas ao Brasil foram, inclusive, as de placas seriais 694 e 695 para a “Leopoldina envergonhada”.
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Cia. Estrada de Ferro do Brasil, locomotiva do tipo Double-ender (2-4-2) "Teixeira Leite". Via Nicolas Burman. |
Fonte extra:
New York Locomotive Works, Rome, N.Y. Complete Record, 1883-1891. Disponível em: https://digitalcollections.smu.edu/digital/collection/rwy/id/3800/rec/2. Acesso em: 08/05/2023.
[1] Não confundir com Balduino IV de Jerusalém,
o “Rei Leproso”.
[2] PATERSON FRIENDS OF
THE GREAT FALLS. The Rogers Locomotive Works. Disponível em: <http://patersongreatfalls.org/rogers.html>.
Acesso em: 08/05/2023.
[3] BLASENHEIM, Peter. “As ferrovias de Minas Gerais no século dezenove”. Locus: revista de história, Juiz de Fora, vol. 2, n. 2, pp. 81-110 (p. 107).
2 comentários:
Pesquisa e publicação generosamente didática...
Esclareceu um assunto muito importante e oculto das locomotivas pioneiras...
Sou natural de Itajubá e, interessado que sou por ferrovia (especialmente a Linha do Sapucaí). aprendi muito lendo esta publicação.
Parabéns e obrigado por ter compartilhado seus conhecimentos!!!
Obrigado, Sr. Pereira Machado. Este blog ainda existe justamente por entender o interesse público do tema de que trata.
Grande abraço.
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