segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Via permanente histórica entre São João del-Rei e Tiradentes

A concessão provincial que originou a E. F. Oeste de Minas permitia aos concessionários construir uma estrada de ferro em bitola estreita.

No momento em que as obras foram iniciadas, em julho de 1879, o número de ferrovias com essa característica já era significativo. A primeira estrada de ferro no território brasileiro a adotar bitola no espectro que consideramos “estreita” pode ter sido a E. F. Recife a Caxangá, cuja construção se iniciou em 1867, coincidindo com a tendência global ao estreitamento. Mas, os coevos afirmam que foi a E. F. União valenciana, inaugurada em 1869. Essa disputa parece ser de pouca valia, considerando que praticamente coincidem entre construção da via e inauguração da operação. As fontes consultadas não permitem concluir qual foi a primeira, o que é irrelevante para o momento. 

A única exceção brasileira de ferrovia em bitola do espectro que consideramos “larga” após 1867 foi a “E. F. Paulista” da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Desconsiderando o alargamento de alguns trechos e malhas – como a E. F. São Paulo-Rio de Janeiro após a encampação pela EFCB e da E. F. Araraquara em 1952 - essa regra apenas seria quebrada pela E. F. Carajás já na década de 1980.[1]

Devido à predominância da bitola de 1.000 mm (1 metro ou “métrica”) até então, sobretudo das ferrovias mineiras ou com incursão em Minas com essa característica, tais como a E. F. Leopoldina e a E. F. Santa Isabel do Rio Preto, o governo provincial entendia que a E. F. O. M. deveria ter sido construída nessa medida.

Quadro 1. Lista das ferrovias em bitola estreita no Brasil (1867-1879).

Estrada

Início das obras

Bitola

E. F. Recife a Caxangá

1867

1.100 mm (3’ 7 1/3”)

E. F. União Valenciana

1869

1.100 mm (3’ 7 1/3”)

E. F. Recife e Olinda

1870

1.400 mm (4’ 7 1/8”)

E. F. Porto Alegre-Nova Hamburgo

1871

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Sorocabana

1872

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Leopoldina

1872

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Baturité

1872

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Paraná

1872

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Campos a São Sebastião

1872

960 mm (3’ 1 3/4”)

E. F. Ituana

1873

960 mm (3’ 1 3/4”)

Companhia Mogiana de E. F.

1873

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Central da Bahia

1874

1.067 mm (3’ 6”)

E. F. Niterói a Macaé

1874

1.100 mm (3’ 7 1/3”)

E. F. Macaé a Campos

1875

960 mm (3’ 1 3/4”)

E. F. Nazaré

1875

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. São Paulo-Rio de Janeiro

1875

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Campos a Carangola

1876

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

Prolongamento EFRSF

1876

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Barão de Araruama

1876

960 mm (3’ 1 3/4”)

E. F. Nazaré

1877

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Porto Alegre-Uruguaiana

1877

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Paulo Afonso

1878

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. de Sobral

1878

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Santo Amaro

1878

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Santa Isabel do Rio Preto

1878

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Bragantina

1878

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Madeira-Mamoré (1ª tentativa)

1878

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Recife ao Limoeiro

1879

1.000 mm (3’ ​3 3/8”)

E. F. Oeste de Minas

1879

760 mm (2’ 6”)

Fontes: BAPTISTA, José Luiz. “O surto ferroviário e seu desenvolvimento”. Separata de: Anais do Terceiro congresso de História Nacional (VI Volume), publicação do Instituto Histórico. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942; Relatórios de várias companhias entre 1869 e 1881; Relatórios do Ministério do Império (1852-1858); Relatórios do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras públicas (1860-1879).

Por influência de Joaquim M. R. Lisboa, engenheiro responsável pela construção da estrada, a via permanente original da E. F. Oeste de Minas, optou pela bitola de 762 mm (2’6”). Agora, veremos o que o dito engenheiro nos apresenta, em seu relatório de 1881, sobre a via permanente:

O material fixo da estrada de Oeste foi todo comprado à fábrica de Thyle Chàteau, na Bélgica, aos Srs. Caramin & C.; sucessores de Blondiaux & C.

Os trilhos são de ferro de 1ª qualidade e 10% de encomenda total veio de aço, sendo esses assentados na descida da cachoeira.

Os trilhos pesam 17 kg por metro corrente, sendo a maior parte de 7 m de comprimento, com uma porção de 6,50 m e 6 m de comprimento. São do sistema vignole. As chapas de junção são de peso de 2 kg 275 gramas cada uma. [...] As dimensões dos dormentes são de 1m40 de comprimento, 12 centímetros de altura e 18 de largura. Convém que os dormentes tenham 1m60. [...] Compraram-se para a construção 145,000 dormentes, sendo alguns para depósito do tráfego.[2]

Joaquim Lisboa não especifica o espaçamento, mas informa que são 100.000 m de ferrovia para 145.000 dormentes. Desconsiderando que parte dos 145 mil dormentes se destinam para depósito (reserva) e que parte dos dormentes se destinam aos desvios e pátios, chegaríamos a uma média de 1,45 dormentes por metro de via. Ao arredondarmos, agora considerando a reserva de parte dos dormentes, o cenário seria de 1 dormente a cada 65/70 cm de via, para ser otimistas (figura 1).

Para as primeiras trocas, as dimensões dos dormentes foram ampliadas para 1,60 m de comprimento com faces de 18 x 13 cm (largura x altura), conforme a instrução de Lisboa.[3]

Não está claro qual o tipo de pedra para o lastreamento original da linha. O uso do cascalho (chamado pelos ferroviários de “seixo rolado”) do Rio das Mortes teria início em 1912, segundo o Ministério de Viação e Obras Públicas, mesma ocasião em que foi iniciada a troca dos trilhos de 17 kg/m (TR-17) de ferro (10% apenas era de aço) pelos de 25 kg/m (TR-25), definitivamente de aço[4]. Essa renovação da via de 1912 foi considerada suficiente até a erradicação de quase toda a ferrovia em bitola de 762 mm em 1983 (figura 2).

O uso de trilhos de perfil acima de TR-25 nesta via traz dois problemas:

1. É um perplexo exagero. Em bom português: desnecessário. O tráfego atual é o menor desde 1881 e o material rodante não foi renovado no sentido de peso bruto/peso por eixo. Resumindo: é uma ferrovia que em 1982 operava nos mesmos moldes de 1920 (ano de aquisição das locomotivas mais “modernas” a rodar nesta linha;

2. Além de ser uma descaracterização que atinge os termos do tombamento 1.185-T-85 e uma medida exagerada para a condição operacional, reflete a destruição ou venda ilegal das pilhas de trilhos de perfil TR-25 guardados como reserva técnica pela RFFSA-SR-2/PRESERFE na porção traseira do pátio leste do complexo ferroviário de São João del-Rei (figura 3).

 

Figura 1. Via permanente no primeiro trecho (Sítio a São João del-Rei). Construído entre 1879 e 1881. Desenho de Welber Santos.

 

Figura 2. Via permanente a partir da renovação iniciada em 1912. Desenho de Welber Santos.

 

Figura 3. Trilhos em reserva técnica na porção traseira do pátio leste em São João del-Rei. Foto de PRESERFE. Fonte: IPHAN. Processo de Tombamento DTC-SPHAN 1.185-T-85, f. 20.

Além da especificação dos trilhos e dormentes, mais a quantidade de dormentes utilizada, é interessante observar um item que nunca foi modificado, herança das técnicas de assentamento de via permanente dos engenheiros virginianos da E. F. D. Pedro II: os pregos de linha do tipo “asa de barata” e “cabeça-de-cachorro” (figuras 4 e 5).

Esses pregos, desenvolvidos pela Tredegar Iron Works, de Richmond, especialmente para a construção de ferrovias no Grande Caribe, sobretudo Cuba,[5] tornaram-se o padrão para a maior parte das ferrovias das Américas e de inspiração ou influência americana. Inicialmente projetados para o melhor assentamento de trilhos em climas tropicais, esses pregos mostraram-se eficientes para uso em qualquer região. É o que demonstra a persistência de seu uso ainda hoje como padrão nas linhas com dormentes de madeira em todas as ferrovias dos Estados Unidos, Canadá e México, o que inclui as oito class one (figura 6).

 

Figura 4. Prego do tipo “asa de barata”. Fonte: DNIT. Procedimentos de Inspeção de Materiais – PIMs: PIM 09 – prego de linha para fixação ferroviária. Brasília: Contrato DIF/DNIT 127, 2008, pp. 8-9.


Figura 5. Prego do tipo “cabeça-de-cachorro”. Fonte: DNIT. Procedimentos de Inspeção de Materiais – PIMs: PIM 09 – prego de linha para fixação ferroviária. Brasília: Contrato DIF/DNIT 127, 2008, pp. 10-11.

No caso do patrimônio e a arqueologia industrial e ferroviária, cabe perfeitamente o velho clichê “conhecer para preservar”. As especificações de um sítio arqueológico ferroviário demanda maiores cuidados técnicos para sua plena preservação e respeito à historicidade.


 Figura 6. Trecho da ferrovia classe um BNSF Railway em San Bernardino, Califórnia, 10 de dezembro de 2016. Notar o uso extensivo de pregos “cabeça de barata”. Foto de Craig Walker. Disponível em: <https://railpictures.net/photo/821075/>. Acesso em: 03/01/2023.



[1] Consideraremos aqui a opção pela bitola larga desde o primeiro momento das ferrovias. A Ferrovia do Aço, por exemplo, se exclui, devido a ser uma continuidade do sistema ferroviário da antiga EFCB e inaugurada como parte da RFFSA SR-3.

[2] LISBOA, Joaquim M. R. Apontamentos sobre a Estrada de Ferro d’Oeste de Minas, Agosto de 1881. Rio de Janeiro: Typ. Soares & Niemeyer, 1881, pp. 7-9.

[3] EFOM. Relatório da Directoria da Estrada de Ferro de Oeste (Minas) Lido na Reunião da Assembléa Geral de Accionistas: 29 de março de 1882. Rio de Janeiro: Typ. G. Leuzinger & Filhos, 1882, p. 33.

[4] CRL. Relatório do Ministério de Viação e Obras Públicas de 1912. Disponível em: <https://bit.ly/3SbHzr9>. Acessado em: 22/09/2022.

[5] ROOD, Daniel B. “Wrought-iron politics: racial knowledge in the making of a Greater Caribbean railroad industry”. The Reinvention of Atlantic Slavery: technology, labor, race, and capitalism in Greater Caribbean. Nova Iorque: Oxford University Press, 2017, pp. 94-120.

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