Recebi a incumbência de responder à pergunta "Em 1880, o Império do Brasil era o maior construtor de estradas de ferro do mundo?".
Infelizmente, após prestar um relevante serviço para o bem da informação sobre a História do Brasil, o Máquina dos Tempos foi descontinuado e suas páginas saíram do ar. Por isso, hoje, republico minha contribuição neste espaço com algumas atualizações.
Visita de D. Pedro II e sua comitiva às obras da Estrada de Ferro Minas & Rio. Fotografia de Marc Ferrez (1843-1923), 1882. Acervo da Biblioteca Digital Luso-Brasileira.
Há pouco mais de um mês, o Projeto
Detecta iniciou a série “Narrativas
Monarquistas”, com o propósito de checar conteúdos divulgados
pelos simpatizantes do velho regime (não confundir com o conceito de “antigo
regime”). Um desses conteúdos afirma que, em 1880, o Império do Brasil “foi o
maior construtor de estradas de ferro do mundo, com mais de 26 mil Km”. Essa informação
aparece em várias páginas da internet e nas redes sociais, porém, sem
acompanhar fontes para verificação.
Entre os propagadores dessa narrativa, estão a página Pedro
II do Brasil, do Facebook, e alguns tuítes de pessoas
aleatórias, conforme os prints abaixo.
Twitter de Pereirão Eletricista, de 15 de novembro de 2018.
Thread no Twitter de 24 de maio de 2018.
Postagem da página Dom Pedro II do Brasil, no Facebook, de 22 de setembro de 2016.
Print da página Ferrovia Vez e Voz, em texto publicado a 25 de julho de 2016.
Pesquisa
Antes de verificar se o Brasil tinha mesmo esses “26
mil km” de ferrovias em 1880, é preciso compreender o contexto global de
expansão do capitalismo industrial e seu impacto fora da Grã-Bretanha, a grande
potência industrial e império colonial do século XIX. Nem todos os países e
colônias que adotaram ferrovias como transporte apresentaram as mesmas
consequências. O impacto da industrialização e da adoção de estradas de ferro
dependia do ambiente natural, da economia e até mesmo da cultura de cada
região. Por exemplo, o Brasil receberá isso de uma maneira, os Estados Unidos
de outra, bastante diferente.
Como diz Winston Churchill, “cada caso é um caso” (alerta
de churchillian
drift!). As especificidades regionais demandam respostas
variadas para perguntas básicas. Por exemplo: de onde veio a tecnologia adotada
e como cada país lidou com suas necessidades relacionadas às estradas de ferro?
Como cada um expandiu suas redes ferroviárias e em que quantidades em cada
época?
Entende-se por ferrovias, desde 1825, o padrão de vias
construídas em ferro ou aço com veículos puxados por locomotivas a vapor. As
ferrovias, ou estradas de ferro – outro nome para a mesma coisa –, podem ser
consideradas um grande símbolo do desenvolvimento tecnológico do século XIX.
Por mais que o desenvolvimento de tecnologias
alternativas já fosse uma coisa presente nas últimas décadas do século XIX, a
locomotiva a vapor – popularmente chamada de “maria fumaça” – foi o principal
veículo a tracionar os trens até algumas décadas atrás. Mas, o que nos importa
nesta investigação é como isso ocorreu no século XIX, especialmente no período
monárquico brasileiro (1822-1889).
A primeira ferrovia considerada como transporte
público ferroviário com tração a vapor definitivo foi a Liverpool
& Manchester na Inglaterra, de construção iniciada em 1826 e inaugurada
em 1830. Seu sucesso foi tão estrondoso para o grande público, que esse meio de
transporte logo tomou de assalto os desejos de governantes e homens de negócios
de todos os continentes. A Stockton
& Darlington é conhecida como “a primeira”, porém, ainda era mais
um experimento do que propriamente um modelo ideal como a sua congênere do
oeste britânico.
Foi assim que o inglês Carlos Grace (Charles Grace)
tentou levantar fundos para construir uma estrada de ferro entre o Rio de
Janeiro e a Serra de Itaguaí. “A empresa teria
o nome de Imperial Companhia Brasileira de Estradas de Ferro. Dizia Carlos
Grace, em seu arrazoado, que o projeto só poderia trazer benefícios ao país,
valorizando as terras vizinhas e dando maiores e melhores oportunidades ao
transporte de gêneros, madeira e até de artilharia. O proponente orçava as
despesas em 4.000 contos, e a estrada chamar-se-ia Iron Rail Way”, afirmou o
historiador Creso Coimbra.
Talvez devido à precocidade do projeto e à ausência de
legislação para esse tipo de empreendimento, esse desejo não tenha prosperado.
Mesmo que Grace tenha insistido até os anos finais da década seguinte, nada
aconteceu além de uma vontade. Porém, nesse ínterim, Bernardo Pereira de
Vasconcelos, senador por Minas Gerais, escreveu um projeto de lei que se
transformou no primeiro decreto-lei assinado pelo então novo regente Diogo
Feijó, o Decreto-Lei
nº 101, de 31 de outubro de 1835. Nascia, assim, o primeiro projeto oficial
para permitir a construção de ferrovias no território brasileiro.
Apesar do Decreto-Lei 101 e do pedido
de César Cadolino de 1838 para construção de uma estrada de ferro entre São
Cristóvão (Rio de Janeiro) e São João del-Rei, na província de Minas Gerais,
apenas em 1852 houve o início da construção da primeira ferrovia do Brasil. A ferrovia
de Mauá, da Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis, deu esse pontapé,
apresentando uma estrada de ferro de 14 km entre o porto de Mauá e Fragoso, com
operação iniciada em 1854. A Estrada de Ferro de Petrópolis era uma concessão
do governo provincial fluminense e nunca chegou à cidade que lhe dava o nome,
exceto após ser arrendada pela Companhia Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará,
a partir de 1882.
Capa de relatório da diretoria da Companhia Estrada de Ferro Príncipe do Grão-Pará de 23 de agosto de 1882.
Porém, uma companhia de estrada de ferro com um
projeto de conectar capitais do Império, como
propunha o Decreto-Lei 101, só veio a ser incorporada em 1855. A Companhia
Estrada de Ferro Dom Pedro II (CEFDPII), que construiria e operaria a Estrada
de Ferro Dom Pedro II (EFDPII), tinha como missão cumprir o projeto
estabelecido por Vasconcelos vinte anos antes. Esse projeto era conectar a
Corte do Rio de Janeiro ao Rio Grande (do Sul), no sentido sul, e Ouro Preto e
Salvador, no sentido norte.
Assim, com a “ferrovia de Dom Pedro”, se iniciava o
“surto ferroviário brasileiro”, na expressão do engenheiro
José Luiz Baptista.
Grande parte das ferrovias construídas no centro-sul
(atual Sudeste) entre 1870 e 1889 foram ramificações da EFDPII. Essa, além de
primeira ferrovia de grande porte, era a mais importante política e
estrategicamente. A linha tronco – ou seja, principal – dessa estrada alcançava
Barra do Piraí (ponto em que o Rio Piraí desagua no Rio Paraíba do Sul). Seus
principais ramais – ou seja, linhas secundárias – partiam do tronco ainda em
Barra do Piraí, RJ, e adentravam pelas províncias de Minas Gerais, em direção a
Ouro Preto, e São Paulo, em direção a Cachoeira Paulista. Essa estrutura pode
ser vista no mapa de 1880 que aponta todas as estações de Rio de Janeiro, São
Paulo e Minas Gerais, encontrado na Biblioteca Nacional.
Mappa de todas as estações das estradas de ferro D. Pedro II, S. Paulo e Rio de Janeiro, Santos e Jundiahy, Sorocabana, Paulista, Ituana, Mogyana, Rezende a Areias, União Valenciana, União Mineira, Oeste-Minas e Leopoldina, 1880. Coleção: BN Digital do Brasil.
Se entre a primeira ferrovia no Reino Unido e a
primeira ferrovia no Brasil se passaram trinta anos, os trinta seguintes foram
de grande agitação para a expansão desse meio de transporte no Brasil (assim
como no resto do mundo). Apesar de Bahia e Pernambuco terem construído duas entre
as cinco primeiras estradas de ferro do país, esse efeito expansivo se deu
principalmente entre as províncias de Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.
A economia cafeeira foi um fator muito importante para essa expansão
ferroviária, porém, não foi um fator isolado.
É importante apontar que todas as ferrovias do norte
do Império (sobretudo atual região Nordeste) tinham o Rio São Francisco como
referência e objetivo. Esse importante rio que nasce em Minas Gerais e desagua no
Oceano Atlântico entre Alagoas e Sergipe, era tido como a melhor forma de ligar
as ferrovias do sul com as ferrovias do norte pela diretoria da EFDPII e o Ministério
da Agricultura.
Uma das principais razões para tantas ferrovias serem
propostas e outras tantas serem construídas, segundo os historiadores Flávio
Saes, Maria
Lúcia Lamounier, Almir
Chaiban El-Kareh e outros, foi a adoção da garantia de juros de 7%
sobre o capital a partir de 1852. Para quem se perguntar o que era essa tal
garantia de juros, explicamos: era uma forma de o governo pagar por parte da
construção das obras de infraestrutura. Chama-se garantia de juros porque
significa que, enquanto a companhia não conseguisse ter lucro, o governo garantia
o pagamento de 7% anual do valor investido por pessoa que adquirisse ações de
cada empresa. Esse valor era interessante para muitos, já que a poupança pagava
apenas 5%.
Tal garantia passou a ser possível a partir da Lei
nº 641, de 26 de junho de 1852, que melhorava as propostas do texto de 1835 para uma
ferrovia que conectasse a Corte do Rio de Janeiro às províncias do Império. Um
dos resultados dessa lei foi a grande expansão ferroviária ocorrida entre 1855
e 1889, recebendo outras leis complementares nos anos seguintes. A partir de
1855, permitiu a existência da própria EFDPII. Depois de 1860, permitiu o boom
de companhias e suas estradas de ferro no resto do país. Um grande número delas
eram ramificações que partiam do tronco e de ramais da EFDPII.
A expansão derivada da Pedro II teve resultados
interessantes, entre os quais uma situação que em muito se deve à política
adotada pelo diretor-presidente da CEFDPII, Cristiano
Ottoni: a contratação de engenheiros
estadunidenses para construir a ferrovia EFDPII a partir de
1858. Essa escolha pelos “americanos” se devia a uma insatisfação geral sobre o
contrato com o inglês Edward Price, que iniciara a construção, tendo entregado
o primeiro trecho da estrada, que ligava a cidade do Rio de Janeiro à antiga
localidade de Belém (atual Japeri, RJ).
Como consequência dos trabalhos dos norte-americanos
na EFDPII, e a grande influência exercida por ela entre as estradas de ferro posteriores,
já no século XIX é possível dizer que havia uma predominância de
características americanas em nossas ferrovias. Isso não implicou a eliminação
dos britânicos, pois esses continuaram com várias formas de participação.
Inclusive, britânicos eram detentores de algumas companhias, como a mais
rentável entre todas no território brasileiro: a Estrada de Ferro Santos a
Jundiaí, da britânica São Paulo Railway
Company.
Assim, voltamos às perguntas que dão razão a esta
investigação: o Império do Brasil era realmente o maior construtor de estradas
de ferro do mundo em 1880? Teria nessa época mais de 26 mil km construídos no
país?
No livro A Construção da Ordem/Teatro das Sombras,
o historiador José Murilo de Carvalho diz que “[o] Império construiu entre 1854
e 1889 cerca de 10 mil quilômetros de estradas de ferro”.
A informação trazida por José Murilo, citado como referência
no blog Ferrovia Vez e Voz, ainda não nos convenceu. Porém, ajuda-nos a
iniciar uma busca por mais detalhes. Para isso, veremos alguns autores que
fizeram pesquisas sobre estradas de ferro no século XIX brasileiro e algumas
fontes primárias.
O historiador e economista William Summerhill
apresenta, em seu livro Order
Against Progress, uma tabela baseada no Repertório
Estatístico do Brasil. Segundo esses dados, em 1880 o Brasil chegou a 3.398
km de estradas de ferro. Devemos notar que, em 1913, segundo os mesmos dados, o
Brasil ainda não havia alcançado os “26 mil km” propagados pelas redes sociais
monarquistas. Em 1889, assim como José Murilo indica de forma resumida a
proximidade de “10 mil km”, a tabela entrega o valor de 9.583 km.
Tabela extraída do livro Order Against Progress, de William Summerhill, de 2003, p. 52.
Tabela extraída do livro Ferrovias e Mercado de Trabalho no Brasil do Século XIX, de Maria Lúcia Lamounier, de 2012, p. 73.
Para complementar, buscamos um autor do próprio século
XIX, contemporâneo dos números.
Em publicação de 1886, denominada Estudo
Descriptivo das Estradas de Ferro do Brasil, Cyro
Diocleciano Pessoa Jr. traz uma tabela com números bastante detalhados. De
acordo com esse estudo, no ano de 1885, o Brasil possuía, em tráfego, 6.512,90
km de estradas de ferro. A mesma tabela informa que havia em construção
2.083,63 km, o que totalizaria 8.596,53 km. Esses valores, apanhados na
contemporaneidade do momento, estão dentro das perspectivas dos números
compilados pelo IBGE mais tarde.
Para completar os 6.930 km das tabelas de William
Summerhill e Maria Lúcia Lamounier referentes ao ano de 1885, seria bastante
verossímil que até o final daquele ano os construtores terminassem mais 417 km
de estradas de ferro para constar nas fontes oficiais futuras.
Agora, verifiquemos o que o Relatório
do Ministério da Agricultura, encabeçado por José Antônio Saraiva, também
secretário, dentro do ministério, para Agricultura, Comércio e Obras Públicas de
1880/1881 tem a nos dizer. Naquele período, os anos de 1880 e
1881 ficaram acumulados. Assim, os dados do ano 1880 não foram computados
separadamente. Portanto, dentro dos relatórios do ministério responsável pela
fiscalização e administração dos assuntos das “ferro-vias”, os valores de 1880
são encontrados dentro do relatório de 1881-1 (sim, há dois relatórios para
1881).
Parte do índice do Relatorio Apresentado à Assembléa Geral na Primeira Sessão da Decima Oitava Legislatura pelo Ministro e Secretario de Estado Interino dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas, José Antonio Saraiva em 1882, referente aos anos de 1880 e 1881.
O relatório referente a 1881 apresenta 2.026,63 km em
tráfego e 2.643,59 km em construção. Em 1882, esses valores se ampliam para
3.911,90 km em tráfego e 2.931,03 em construção. Com isso, é possível verificar
que a quilometragem de cada ano é um meio termo entre o que havia “em tráfego”
e o que havia “em construção”. Logo, apesar de os números dos relatórios dos
ministérios não serem exatamente os das estatísticas apresentadas anos mais
tarde, eles demonstram uma média entre o que existia e o que seria entregue a
cada ano.
Portanto, fica comprometida também a ideia de que,
durante o período monárquico, o Brasil tenha construído mais estradas de ferro
do que no período republicano. Pois, se entre 1854 e 1889 – 35 anos – o Império
do Brasil construiu em torno de 10 mil km de ferrovias, entre 1890 e 1913 – 23
anos – os Estados Unidos do Brasil (nome oficial do país naquela época) construíram
em torno de 15 mil km. Às portas da Primeira Grande Guerra, marco que alguns historiadores
chamam de fim real do século XIX, o Brasil alcançava o total de 25 mil km de
ferrovias, trinta e cinco anos mais tarde do que encontramos pela internet
adentro.
Litografia de Carlos Linde extraído do livro Brasil: Estrada de Ferro de D. Pedro II... Publicação feita por ordem do Ministerio d’Agricultura, Commercio e Obras Publicas, publicado pelo Imperial Instituto Artístico, Rio de Janeiro, 1867. O desenho original é de autoria do arquiteto William Ellison.
“Expansão de ferrovias em dez países selecionados (Extensão de linhas abertas em quilômetros [1km = 5/8 milhas])”
O problema dessa tabela é sua concentração em países
europeus. O que impede uma noção mais apurada da expansão,
que é um fenômeno global. Nesse aspecto, não devemos desconsiderar o
esforço imperialista britânico, em suas colônias, para construção de ferrovias nos
seus vários domínios. Mesmo assim, é possível ter alguma
noção, considerando os 18.507 km do Império Austro-Húngaro, os 23.089 km da
França, os 33.838 km da Alemanha, os 25.060 km da Grã-Bretanha, os 9.280 km da
Itália, os 22.865 km da Rússia, os 7.490 km da Espanha e os 5.876 km da Suécia.
Porém, entendemos desnecessário esse levantamento global, já que é possível
comparar com um país de dimensões próximas às brasileiras em 1880 e que era um
território do mesmo continente: os Estados Unidos da América.
A primeira ferrovia dos Estados Unidos, oficialmente,
foi a Baltimore & Ohio Railroad, de 1828, que inspirou a construção
de outras. Em 1831, a região Nordeste dos EUA já iniciava um processo de
industrialização para atender à crescente demanda por locomotivas mecânicas em
um contexto de febre ferroviária. O abolicionista e artesão Mathias Baldwin
abriu sua oficina para construção de locomotivas a vapor, que se tornaria a
maior fábrica de produtos para ferrovias na entrada do século XX. Essa fábrica
já era a maior do mundo em 1880 e, inclusive, nesse tão importante ano, já era
o maior fornecedor para as ferrovias brasileiras.
Entre 1862 e 1889, a
EFDPII apresentava o total de 122 locomotivas dos EUA (segundo a documentação
da Baldwin
Locomotiva Works). Para o resto do Brasil, o total de encomendas
apenas à BLW é de 289 (também, segundo a documentação BLW). Somam-se as 9 americanas, 7 construídas pela Rogers Locomotive
& Machine Works e 2 pela H. K. Porter, temos 420 locomotivas dos EUA. O total de locomotivas
para as ferrovias do Brasil entre 1853 e 1889 é de 553 unidades, ao somarmos as
europeias listadas pelo Inventário Geral de Locomotivas da Sociedade para Pesquisa
e Memória do Trem, mais os dados disponíveis na DeGolyer
Library, geramos o
seguinte quadro:
A princípio, essas informações parecem uma bobagem.
Mas se encaixam no argumento maior sobre a nem tão imensa rede ferroviária do
Império do Brasil em escala mundial, como propagam as páginas monarquistas nas
redes sociais e em outros cantos da internet. Um estado soberano e devidamente
“liberal” e “avançado” não apenas investiria na construção de ferrovias para
atender às suas demandas de agroexportação de café, algodão e açúcar, mas,
também se preocuparia com o desenvolvimento de uma indústria metalúrgica para
atender a essa grande demanda ferroviária por maquinário de grande complexidade,
coisa que o Tio Sam fez, como demonstram os quadros seguintes, comparativos
entre Grã-Bretanha e EUA.
Quadro com os fabricantes de locomotivas da Grã-Bretanha entre 1823 e 1888. Fontes: Grace’s Guide e LOWE, James W. British Steam Locomotive Builders. Barnsley: Pen & Sword, 2014, p. 9.
Quadro com os fabricantes de locomotivas dos EUA entre 1831 e 1887. Fontes: Grace’s Guide; BROWN, William. The History of the First Locomotives in America: from original documents, and testimony of living witnesses. New York: D. Appleton and Company, 1871; WHITE, John H. A History of the American Locomotive: its development, 1830-1880. Nova Iorque: Dover Publications, 1968 e DeGolyer Library.
Em 1850, quando o Império do Brasil sequer havia
levado a cabo os projetos de 1827, de Carlos Grace, e de 1835, de Bernardo
Pereira de Vasconcelos, os Estados Unidos já possuíam pelo menos cinco
oficinas/fábricas de locomotivas (quadro acima) e haviam construído cerca de 9
mil milhas (14 mil km) de estradas de ferro. Esse valor pode ser encontrado no
livro American
Railroads and British Investors, de S. F. Van Oss, publicado em
1893. Segundo o autor, havia 54.202 km em trilhos de aço contra 131.913 km em
trilhos de ferro nos Estados Unidos de 1880. Uma década depois, 270 mil km eram
do melhor metal e apenas 65 mil km permaneciam de ferro: “and everybody who
knows how much the capacity of a steel track exceeds that of an iron, will
understand what economies this change alone rendered possible” (e todo mundo
que sabe o quanto a capacidade de um trilho em aço excede a capacidade de um em
ferro, entenderá quais economias essa mudança, sozinha, possibilitou), conclui
Van Oss.
Locomotiva fabricada em 1880 pela Baldwin Locomotive Works (Burnham, Parry, Williams & Co.) de Filadélfia para a Estrada de Ferro Oeste de Minas, uma das ferrovias tributárias da Estrada de Ferro Dom Pedro II na província de Minas Gerais. Imagem de negativo de vidro dos arquivos da BLW preservados no Railroad Museum of Pennsylvania.
Conclusão:
LOROTA!
O período imperial brasileiro coincide com um fomento
internacional para a modernização das redes viárias. A segunda revolução
industrial e uma de suas principais características, que era a predominância da
máquina a vapor, gerou um impacto global em que as estradas de ferro foram
“fato e símbolo”, como disse o historiador
da arte William Curtis em Arquitetura Moderna Desde 1900. Por seu valor
simbólico e logístico, a ferrovia foi adotada em territórios de todos os
continentes em uma velocidade que poderíamos chamar de alucinante. Não à toa, até
mesmo o primeiro filme,
dos Irmãos Lumière, traz como tema a chegada de um comboio ferroviário a uma
estação (L'Arrivée d'un train en gare de
La Ciota, de 1895). Era o meio de
transporte do e para o século XIX. Constituiu-se como parte de projetos e ações
de uma civilização capitalista e, também, de base predominantemente liberal e
imperialista anglo-saxônica. Considerando os dados levantados por essa
investigação, a equipe do Projeto Detecta conclui que a narrativa
verificada não procede: o Brasil não era o maior construtor de estradas de
ferro do mundo em 1880 e só durante o período republicano alcançaria a marca de
26 mil quilômetros construídos.
Pesquisa e redação: Welber Santos*
*Doutor em História pela Universidade Federal de Ouro
Preto. O texto acima foi produzido com exclusividade para o Projeto Detecta
e inclui resultados de uma parte de sua pesquisa de doutorado, que são tratados
aqui de forma mais sucinta e adequada ao público não especializado.
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