quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Patrimônio Arquitetônico da Industrialização

Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização: problemas teóricos de restauro
Por Beatriz Mugayar Kühl[1].
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Raramente as questões conceituais relacionadas com a preservação do patrimônio arquitetônico vinculado ao processo de industrialização são debatidas; a não-observação dos princípios teóricos do restauro na prática, porém, tem conseqüências nefastas e graves. (...)
Parte relevante do legado da industrialização é patrimônio cultural e seu tratamento envolve um conjunto complexo de problemas. Um deles, por exemplo, decorre das vastas áreas que em geral ocupam os conjuntos industriais, e faz com que sua preservação assuma papel estratégico e esteja ligada de forma indissolúvel com a escala urbana e, muitas vezes, também territorial. Ademais, com freqüência, esses complexos estão em zonas centrais de várias cidades e sobre eles incide considerável pressão da especulação imobiliária, fator que deve ser equilibrado com cura. Primordiais são as questões relacionadas com a história – da arquitetura, do urbanismo, da economia, da engenharia, da técnica, do trabalho etc. –, e as discussões vinculadas à antropologia, à geografia e à sociologia. O valor afetivo e simbólico associado a determinadas atividades produtivas e ao trabalho, a vinculação de variadas comunidades com seu passado industrial e o potencial político e econômico das transformações, possuem grande relevância e devem ser devidamente examinados e ponderados.
O debate sobre o papel memorial desses bens, a importância social do legado da industrialização, os estudos antropológicos e históricos, em suas várias possíveis vertentes, são temas do maior valor, pois evidenciam, através de múltiplos enfoques, de maneira articulada ou isolada, o interesse desse tipo de patrimônio para a preservação, ou seja, as razões para preservá-lo, com importantes repercussões nos moldes de atuação. É também da maior relevância a inter-relação entre restauro e planejamento urbano e territorial, e questões econômicas e políticas.
Cada um dos assuntos supracitados é merecedor de minuciosos estudos específicos. É necessário ainda uma tratativa que os articule, pois se esses estudos permanecerem isolados, não proporcionarão uma compreensão abrangente do tema, acarretando, assim, limites para um aprofundamento ulterior do próprio assunto específico. (...)
São muitas as áreas que se devem ocupar da preservação, entendida num sentido lato; mas para que a intervenção prática num bem (ou conjunto de bens ou a própria estratificação de um território ao longo do tempo) seja apropriada – isto é, para que não o desnature nem falsifique – deve-se enfatizar que existe um campo disciplinar autônomo (algo diverso de campo disciplinar isolado), que necessita da articulação de variados domínios do saber. Restauração, que tem suas raízes no Renascimento e se vem conformando como campo do saber, num contínuo intercâmbio entre teoria, prática e propostas legislativas, desde finais do século XVIII, assumindo uma paulatina e devida autonomia há cerca de um século; possui, assim, referenciais teórico-metodológicos e técnico-operacionais que lhe são próprios. (...)
O inventário do patrimônio industrial é tema da maior relevância e instrumento essencial para a preservação e sua importância será devidamente ressaltada. No entanto, é trabalho cumulativo que requer tempo, sendo, necessariamente, investigação de ampla equipe multidisciplinar – se o intuito for de fato registrar de modo extenso e sistemático os remanescentes das atividades de produção e dos meios de comunicação e transporte resultantes do processo de industrialização (...) – que extrapola os limites e objetivos de uma reflexão individual.(...)
Procura-se (...)enfatizar que a preservação de bens culturais, como começou a ser entendida principalmente a partir de finais do século XVIII, fundamenta-se em razões culturais num sentido lato – pelos aspectos estéticos, históricos, educacionais, memoriais e simbólicos – científicas – pelo conhecimento que essas obras trazem em vários campos do saber, tanto para as humanidades quanto para as ciências naturais – e éticas – que direitos temos de apagar os traços de gerações passadas e privar as gerações futuras da possibilidade de conhecimento de que esses bens são portadores –, voltando-se às variadas formas de expressão do fazer humano. Diferencia-se, pois, de ações de cunho prático que prevaleceram para qualquer obra legada por outras épocas até que a preservação se consolidasse como ato de cultura, quando se passou a dar uma atenção distinta a determinados tipos de bem nos quais se reconhecia um significado cultural. Em tempos recentes, as razões pragmáticas, muitas vezes disfarçadas de ações culturais, voltaram a prevalecer, mesmo em relação a obras reconhecidas legalmente como patrimônio cultural. Imperam razões que trazem benefícios materiais, esquecendo-se das raízes espirituais e humanísticas que motivam o campo. Ou seja, muitas das ações, hoje, são ditadas por questões utilitárias: pelo uso, pela especulação em busca de maiores lucros, para obter visibilidade na mídia, também com intuitos político-eleitorais, negando a origem, os objetivos e a própria essência da preservação como ato de cultura que tutela a memória e o conhecimento.


Obs.: Os fragmentos aqui publicados o são por razões estritamente culturais e educativas. Caso a autora e/ou a editora se sintam lesados, peço que, por gentileza, entrem em contato via comentário para a imediata remoção.

[1] Professora Adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e membro do ICOMOS.

6 comentários:

EFGoyaz disse...

Tudo o que eu li aqui pude vincular com o Pátio da Estrada de Ferro Goyaz, aqui em Araguari-MG. Mesmo tombado pelo IEPHA-MG e pelo município, está sendo dilapidado pela atual gestão municipal. Uma rua foi aberta cortando o pátio em dois e o promotor local não vê problema algum. A abertura dessa rua desnecessária deu vazão à inúmeros furtos e depredações, oriundos da comunidade e comprovadamente até da própria prefeitura. Patrolaram algumas linhas, invadiram o complexo e todos querem fazer crer que essa saída foi benéfica.
Esses prejuízos jamais poderão ser desfeitos. Mas o fechamento da referida rua e a reintegração do pátio podem ser o começo de uma recuperação de fato inteligente.

Welber disse...

Gláucio, esse imediatismo é só mais um sintoma da falta de noção sobre o processo de transformação das coisas. E processo de transformação não quer dizer sair transformando com a destruição da memória. É reconhecer nos testemunhos a transformação ao longo de todo o tempo, e isso é parte do reconhecimento de si.

Welber disse...

Aliás, se o Ministério Público ao qual vc se refere for o estadual, esqueça. Ao que tenho observado, os promotores são sujeitos confluentes com a elite rançosa dos municípios, andam de mãos dadas ao coronelismo tardio e nunca agem contra o poder vigente, por maiores que sejam as razões para tal.

EFGoyaz disse...

Welber, você acertou exatamente. É sim o MP estadual. Ouço gente reclamar dele em várias partes do estado. Acho que ainda estão muito despreparados. Em geral, são enérgicos contra os pequenos, mas nem tanto contra os grandes, em especial à classe política.

EFGoyaz disse...

Fiz algumas denúncias, levamos o promotor lá no pátio e ele não viu nada de errado com a abertura da rua, até elogiou. Mas se interessou imediatamente em punir os miseráveis que invadiam o pátio (agora aberto) para furtar peças (em grande maioria, usuários de crack) e não achou nada de errado com quem abriu o pátio. Tomara que a História guarde o nome desses destruidores.

Welber disse...

Despreparados??? Não, eles são muito bem preparados. O papel deles é justamente punir o pequeno em auxilio do status quo.