sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Depois do ensaio: a representação da cegueira e um prato de lucidez (adeus 2010)

"Desabe, sim, quem nesta cadeira se sentou, ou já não sentado está, mas caindo, como é o caso, e o estilo aproveitará da variedade das palavras, que, afinal, nunca dizem o mesmo, por mais que se queira. Se o mesmo dissessem, se aos grupos se juntassem por homologia, então a vida poderia ser muito mais simples, por via de redução sucessiva, até a ainda não simples onomatopeia, e por aí fora seguindo, provavelmente até ao silêncio, a que chamaríamos o sinónimo geral ou omnivalente. Não é sequer onomatopeia, ou não é formável ela a partir deste som articulado (que não tem a voz humana sons puros e portanto inarticulados, a não ser talvez no canto, e mesmo assim conviria ouvir de mais perto), formado na garganta do tombante ou cadente, embora não estrela, palavras ambas de ressonância heráldica que estão designando agora aquele que desaba, pois não se achou correcto juntar a este verbo a desinência paralela (ante) que perfaria a escolha e completaria o círculo. Desta maneira fica provado que não é perfeito o mundo.
"Já de perfeita se apelidaria a cadeira que está a cair. Porém, mudam-se os tempos, mudam-se vontades e qualidades, o que foi perfeito deixou de o ser, por razões em que as vontades não podem, mas que não seriam razões sem que os tempos as trouxessem. Ou o tempo. Importa pouco dizer quanto tempo este foi, como pouco importa descrever ou simplesmente enunciar o estilo de mobiliário que tornaria a cadeira, por obra de identificação, membro de uma família decerto numerosa, tanto mais que como cadeira pertence, por natureza, a um simples subgrupo ou ramo colateral, nada que se aproxime, em tamanho ou função, desses robustos patriarcas que são as mesas, os aparadores, os guarda-roupas ou pratas ou louças, ou as camas, das quais, naturalmente, é muito mais difícil cair, senão impossível, pois é ao levantar da cama que se parte a perna ou ao deitar que se escorrega no tapete, quando partir a perna não foi precisamente o resultado de escorregar no tapete. Nem cremos que importe dizer de que espécie de madeira é feito tão pequeno móvel, já de seu nome parece que já fadado ao fim de cair, ou será conto-do-vigário linguístico esse latim cadere, se cadere é latim, porque devia sê-lo. Qualquer árvore poderá ter servido, excepto o pinho por ter esgotado as virtudes nas naus da Índiae ser hoje ordinário, a cerejeira por empenar facilmente, a figueira por rasgar à traição, sobretudo em dias quentes e quando por causa do figo se vai longe de mais no ramo; excepto essas árvores pelos defeitos que têm, e excepto outras pelas qualidades que lhe abundam, como é o caso do pau-ferro onde o caruncho não entra, mas que padece de peso demasiado para o volume requerido. Outra que também não vem ao caso é o ébano, porque precisamente é apenas diferente nome de pau-ferro, e já foi visto o incoveniente de utilizar sinónimos ou supostos serem-no. Muito menos nessa destrinça de questões botânicas que de sinónimos não cuida, mas cuida de verificar dois diferentes nomes que a gente diferente deu à mesma coisa. Pode-se apostar que o nome pau-ferro foi dado ou pesado por quem teve de o transportar às costas. Aposta pela certa e ganha."
José Saramago[1]

Devo confessar que não consegui acompanhar a relativa velocidade com que o ano de 2010 acertou minha fronte. Tão veloz que não tive sequer tempo de tentar me desviar do golpe ou perceber a face do agressor com alguma nitidez.
Pode até ser que em minha percepção pessoal 2010 tenha terminado com deficit nas contas, mas devo admitir que o mundo em volta mostrou que a História continua a existir. Por mais que muitos aspectos tenham ido ao chão, desabado, a leitura de grandes pensadores do século XIX, juntamente com seus mais aclamados (ou não) intérpretes continua sendo válida para que elocubremos sobre o universo ao nosso redor. 
O ano que ora desaba, mesmo que abas não possua, foi de gran valia para a percepção de que aqueles que mais se beneficiam do status-quo não sabem lidar com a diferença, com o múltiplo, com a variedade, com a infinitude de possibilidades. 
As classes médias, infinitamente medíocres, bombardeadas por programas de TV banhados pela mais aterradora alienação e anemia criativa, mostram-se alvos fáceis de um discurso higienista, em que as meninas e meninos abrem mão da própria dignidade e do mais profundo dispositivo com que a espécie homo sapiens se constituiu nos milhares de anos de sua constituição. Querem ser uns iguais aos outros, mas iguais não em direitos, deveres e possibilidades de expansão da consciência; querem ser iguais com seus dentes branqueados artificialmente, rostos plastificados e impúbios, nádegas e seios avolumados pela indústria, pele com cheiro de lavanda. 
Os livros que mais se lêem (ou pelo menos que mais se vendem) são esses que se transformam em filmes que corroboram com minha mais doce indignidade. Os heróis são a mais pura fantasia: vampiros que viram purpurina e bruxos que se acham proprietários da mais alta luz para proteger o mundo dos mortais; todos de pele branca ou clareada, limpinhos, vendidos a uma classe imbecilizada, essa que frequenta shopping centers em São Paulo, Fortaleza, Belo Horizonte, Manaus, e que viaja para a Europa para conhecer tudo de longe, sobre um onibus turístico, e prefere comer em McDonalds. Que chama o programa Bolsa Família de "Bolsa Esmola", e que perto de programas de bem-estar social de países como Irlanda, Alemanha, Suécia, entre outros, é quase nada. A mesma elite medíocre que não sabe ser oposição  num debate e que aplaude o golpismo midiático de cada dia.
Em 2010 se confirma o que todos sabiam, mas ainda não podia ser escrito nas teses por falta de material para indicar nas notas de roda-pé. A LIBERDADE DE EXPRESSÂO e de INFORMAÇÃO ganhou novo fôlego com o WikiLeaks, vazando informações que deixaram de face rubra de vergonha e raiva o grande império do século XX.
Ao servir de grande inspiração para o novo nome do presente blog, o WikiLeaks ganha minha admiração por fomentar a coragem de lançar mão da luta pela transparência da administração pública e pela preservação de uma das mais caras virtudes humanas, a Memória.
2010 reforçou um sentimento que aos poucos vinha perdendo: meu carinho e admiração pela História e o resgate de seu sentido, de seu papel como ciência que deve trazer à luz os acontecimentos, dando à eles a mais cuidadosa análise, tendo como princípio primordial a justiça. Não deve a história, na figura de sua mais importante matéria prima, ser um simples objeto de fetiche. Como bem dizia Marc Bloch, um dos grandes mestres, "a história não é a relojoaria ou a marcenaria. É um esforço para o conhecer melhor: por conseguinte, uma coisa em movimento".[2]


Como as coisas continuam a existir, tentaremos em 2011 pelo menos fazer diferente. Diferente, obviamente, porque se o time perdeu em 2010, deverá receber reforços mais vigorosos para o combate que continua. A batalha pode não ter sido feliz em 2010 (com exceção, deixem-me ser claro, contra o obscurantismo da campanha presidencial do Sr. José Serra) mas esse período de virada sempre inspira a novos pensamentos. O simbolismo, por mais cético eu possa ser, da transformação que deve ser possível me atinge como um raio neste momento de tormentas. E na tormenta, na tempestade desse mar insano, gritarei como o Tenente Dan contra a ira divina.

"A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos  trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens."
Jacques Le Goff[3]

[1]SARAMAGO, José. Objecto Quase. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1994, pp.11-13.
[2]BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: JZE: 2001, p.46.
[3]LE GOFF, Jacques. "Memória". In: História e Memória. Campinas, SP: UNICAMP, 2003, p.471.

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